Por Ivan Carlos Lago – Opinião
Nos últimos dias muitos amigos têm “cobrado” artigos para o blog. Afinal, em tempos de quarentena, não faltariam nem tempo nem assunto para escrever. Eles têm razão. De fato, tempo e assunto não faltam. Mas, tempo e assunto seriam suficientes para escrever?
O problema, no meu caso, é que fico em dúvida se realmente tenho algo útil a escrever nesse momento, ou se deveria “aprender” mais sobre ele antes de dizer qualquer coisa. Só porque o mundo inteiro não fala de outro assunto não significa que eu também tenha que falar. Até porque o mundo inteiro fala tanta bobagem, tanta coisa sem pé nem cabeça, que dá um trabalho danado processar tudo e tentar refletir minimamente.
O que estamos passando não é algo simples. Sim, a pandemia vai passar. Mas o mundo não vai voltar ao normal. Afinal, o “normal” é justamente a raiz de tudo o que estamos passando.
A quarentena deveria servir para fazermos algo para o qual não temos tempo durante a correria da vida diária, “normal”: pensar. Vejo gente que passa o dia enchendo o saco dos outros nas redes sociais, repetindo centenas de vezes para que “fiquem em casa”, que tenham com os velhinhos e com os profissionais da saúde a empatia que eles próprios não têm com os miseráveis que estão passando fome e para quem os planos de auxílio do governo são apenas notícias na televisão. Vejo outros montando e reproduzindo vídeos, fotos e piadinhas sem graça sobre o coronavírus e sobre como “lidar” com ele e com a quarentena que ele nos impôs, numa tentativa desesperada de negar a seriedade do que está acontecendo.
Vejo gente disputando para ver quem é mais criativo nos dias de confinamento, ou quem é mais inteligente nas brincadeiras que inventam para distrair os filhos, cuja presença em casa parece ser motivo de pavor maior do que o vírus. Vejo outros fazendo poses ao lado de livros em tentativas cômicas de mostrar que sua quarentena é intelectualizada. Vejo outros ainda postando frases de efeito sobre como o confinamento lhes proporcionou oportunidade de pensar sobre si mesmos e sobre suas prioridades, como se o fato de nunca terem sido capazes de fazer isso antes fosse motivo de orgulho. Será mesmo que alguém que precisou de uma pandemia e de confinamento para pensar na própria vida é alguém que tem algo útil a dizer aos outros neste momento?
Vejo gente supostamente esclarecida embarcando em teorias da conspiração estapafúrdias, reproduzindo fake news e ajudando a assustar e confundir as pessoas quando informação e conhecimento científico são os melhores instrumentos que temos.
Vejo bate-bocas estúpidos sobre qual partido ou grupo político está se comportando melhor diante da pandemia, sustentados com argumentos que envergonhariam um estudante do jardim de infância.
Esses comportamentos são, no fundo, estratégias de fuga, tentativas de distração para afastar do pensamento que assusta: o mundo não voltará ao “normal”. Não, nós não vamos ficar dois ou três meses trancados em casa para depois retomarmos nossas vidas como se nada tivesse acontecido. Não vamos trabalhar mais intensamente durante um tempo para repor aulas e tarefas atrasadas e depois tirarmos férias e esquecer tudo o que passou. No fundo, todos sabemos disso, e é isso que nos angustia.
É claro que isso não é, necessariamente, ruim. A implosão das bases de nosso estilo de vida pode trazer algo bom, pode ser o início de um novo modelo de sociedade e de organização da vida. Mas isso não muda o fato de que o mundo será diferente quando isso passar, e toda mudança gera angústia e medo.
Por isso, um exercício interessante é tentar imaginar como será o mundo depois da pandemia. E aqui talvez haja espaço para um pouco de otimismo, mesmo que ele se aproxime, perigosamente, da ingenuidade.
De minha parte, espero que depois de tudo isso a valorização da ciência esteja realmente entre as principais lições que aprendemos. Uma valorização que passa pelo entendimento do que é a ciência, de como ela funciona e de quais são seus métodos para produzir e socializar conhecimento. Teremos realmente aprendido algo se passarmos a organizar nossa vida e nosso pensamento com um pouco mais de ciência e de método científico. Se as “bases científicas” não forem apenas justificativa para os jornalistas de todo canto pedirem para ficarmos em casa, mas se tornarem de fato parâmetro de organização de nossas vidas e da nova sociedade que precisaremos construir.
Espero que os “fodões” das redes sociais, que agora cobram dos cientistas e das universidades soluções para a pandemia e uma vacina para o vírus, não se transformem, em alguns meses, nos sabichões defensores de cortes no orçamento da educação, da ciência e da pesquisa. Talvez o vírus que causará a próxima pandemia mundial seja hoje carregado por algum pequeno roedor endêmico das barrancas do Rio Uruguai. Então, quando algum professor universitário desenvolver um projeto de pesquisa para mapear pequenos roedores da região e investigar os patógenos que eles carregam, que esses “fodões” do FaceBook não levantem a voz para vomitar comentários imbecis sobre como os professores da universidade estão “desconectados da realidade” pesquisando “coisas sem serventia para a população” com o “dinheiro do povo que paga impostos”. E, se isso acontecer, que tenhamos coragem e decência para mandar que se cale, e defendamos a ciência contra o achismo e a ignorância, mesmo que eles estejam ao nosso lado, na nossa família.
Espero que os governos entendam que milhões de dólares pesquisando vida silvestre, por exemplo, para mapear outros vírus e seus potenciais riscos para a humanidade, são uma pechincha perto dos trilhões gastos para tentar amenizar os estragos econômicos e do incalculável custo das vidas perdidas por uma pandemia global. E que aceitem, de uma vez por todas, que o mundo seria, sim, um lugar melhor, se gastássemos em pesquisa para salvar vidas metade do dinheiro que gastamos em armas para destruí-las.
Que sejamos capazes de reconhecer não apenas a importância das ciências médicas para a pesquisa de doenças e de suas curas, mas o potencial das ciências humanas para compreender os impactos sociais de abalos econômicos, de crises humanitárias, de charlatanismo político. Que entendamos que os estragos de um modelo econômico socialmente injusto e de um governo fascista podem ser tão grandes quanto os de uma pandemia, e reconheçamos, assim, que a história e a ciência política nos são tão importantes quanto a medicina.
Espero que a sociedade entenda que o conhecimento cientifico nem sempre tem uma “aplicação” imediata, porque o que move o verdadeiro cientista não é a vontade política de resolver esse ou aquele problema, mas o desejo de compreender o mundo à sua volta e tudo o que existe nele. Se esse conhecimento será transformado em tecnologias, em objetos, em máquinas, em vacinas, em remédios, em venenos ou em armas, cabe à sociedade decidir depois.
Se todos tivéssemos tido aulas de economia e ciência política na escola, entenderíamos as relações entre os modelos econômicos dos diversos países e sua estrutura de atuação diante da pandemia. Entenderíamos porque o Brasil não consegue implantar uma política de ajuda econômica aos mais vulneráveis. Entenderíamos porque os EUA serão provavelmente a nação com mais mortes pela COVID-19, mesmo sendo o país mais rico do mundo. Entenderíamos porque nosso presidente nega a ciência e qualquer resquício de racionalidade em seus discursos e ações e ainda assim mantêm um terço dos brasileiros fieis a ele. Entenderíamos porque nosso ministro da economia paralisou com a chegada da pandemia, incapaz de pensar qualquer política pública para além de privatizações e sucateamento da estrutura do Estado. Saberíamos a diferença entre liberalismo e neoliberalismo. Saberíamos quem foi Keynes e porque estão falando dele novamente como modelo de ação do Estado. E então talvez nossas postagens em redes sociais não fossem tão toscas.
Espero que as pessoas valorizem o conhecimento científico em todos os seus níveis, desde as lições de biologia do ensino fundamental até a pesquisa de ponta, pois assim talvez nos tornemos menos propensos a acreditar em fake news, em líderes imbecis, em babaquices de redes sociais, em argumentos toscos, em negacionistas e curandeiros políticos.
Talvez depois da pandemia não esqueceremos tão rapidamente da importância da ciência, e pararemos de achar graça em defensores do terraplanismo. Talvez até sejamos capazes de perceber que o terraplanismo, o culto à violência, o fascismo, e negacionismo, o ultraliberalismo, o machismo, o anti-intelectualismo e tantos outros “ismos” estão todos interligados e precisam ser combatidos, todos, em suas estruturas fundamentais.
Espero, enfim, que tenhamos de fato um mundo melhor depois que tudo isso passar. E que o vírus não tire de muitos de nós a possibilidade de conhecê-lo.
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*Ivann Carlos Lago é sociólogo, mestre e doutor em Sociologia Política
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