Por Ivan Carlos Lago – Opinião
O país está paralisado. À beira de uma “recessão oficial”, a economia retrocede. A inflação, especialmente dos alimentos, galopa. O emprego e a renda dos mais pobres encolhem. O Estado é desmantelado e privatizado. As políticas públicas são esfaceladas. A saúde definha. A educação não tem rumo e seu ministério tornou-se uma balbúrdia permanente. Os aposentados viraram inimigos da nação e usurpadores do dinheiro público. As universidades e seus professores são caçados como hereges.
O governo não tem programa, não tem ideia, não tem rumo, não tem noção. Virou um circo de horrores, um grande reality show comandado por um “mito” que é orientado por um astrólogo “gagá” que mora nos Estados Unidos, afirma que a terra é plana e que a Coca-Cola é feita com fetos humanos.
Parece um cenário propício à oposição, cheio de lacunas que poderiam ser preenchidas com grandes debates sobre o país e seu desenvolvimento, grandes projetos nacionais e formas de colocá-los em curso.
Contudo, não é nada disso que vemos diariamente. Ao contrário, o que se vê é uma esquerda desarticulada, inerte, cheirando a mofo de velhas convicções e incapaz de propor um projeto alternativo minimamente coerente e viável.
Em vez de unir as mentes e os discursos oposicionistas em torno de uma defesa do país e de sua democracia, os partidos de esquerda batem cabeça e brigam entre si pelos espólios do desgoverno de plantão. Enquanto isso aderem à estratégia fácil do “quanto pior, melhor”, apostando no definhamento progressivo das bases de apoio ao atual governo.
No lugar de consolidar um campo oposicionista coerente, parlamentares e líderes esquerdistas preferem torcer para que estudantes e professores universitários façam greve, ocupem as ruas, protestem e confrontem o governo que eles se mostram incapazes de enfrentar a não ser com bravatas.
A esquerda brasileira tem em seu currículo incontáveis oportunidades de autocrítica desperdiçadas. E caminha a passos largos para ampliar a lista. Prefere torcer para que tudo dê errado e o governo do país caia em seu colo por desígnio do destino a reconhecer os próprios erros e (re)começar o movimento de reconstrução de si mesma, de suas ideias, de seus métodos e de seus projetos de país.
Não há dúvidas de que os contingenciamentos orçamentários na educação, além de serem inexplicáveis do ponto de vista estratégico para um país que precisa muito e urgentemente de educação, são uma retaliação do ministro e do governo às universidades, motivadas pelo ressentimento ao pensamento crítico e pelo ódio a quem estuda mais do que eles.
Contudo, não se pode negar que esses contingenciamentos ocorrem desde 2015 e que, nos anos anteriores, nem a esquerda e nem a mídia fizeram o barulho que fazem agora. Claro, antes tarde do que nunca. Mas o caráter seletivo da revolta deixa margem para especular que, para além do necessário protesto contra o desmantelamento da educação e das universidades, ela também é lamentavelmente oportunista.
Outro exemplo: as universidades federais e institutos federais de educação estão em polvorosa com as sinalizações do governo de que não pretende nomear, necessariamente, o primeiro colocado nas eleições para reitoria. Utilizando-se do estatuto da lista tríplice, o governo pretende nomear apenas candidatos alinhados ideologicamente, o que na prática é mais uma forma de perseguir e eliminar “esquerdistas”.
Ora, não há dúvidas de que o governo recorre ao lado mais autoritário e deplorável do uso da máquina de governo para perseguir quem não se encaixa em suas convicções ideológicas. Mas isso não deveria servir para esconder o fato de que a esquerda, liderada pelo Partido dos Trabalhadores, teve 13 anos para mudar a regra da lista tríplice e não o fez. Bastava uma alteração na legislação em vigor, para a qual possuía ampla maioria no Congresso, na maior parte desses 13 anos, e a autonomia universitária estaria um pouco mais protegida dos ataques ideológicos que vem sofrendo.
A despolitização que vemos avançar sobre a sociedade brasileira e suas instituições, com destaque para a educação, não é senão o “reverso da moeda” do que fez a esquerda durante três décadas de democracia, politizando absolutamente tudo em nome de uma luta permanente do bem contra o mal.
Tudo foi politizado, do lugar que frequentamos para nos alimentar à comida que consumimos e a forma como nos sentamos à mesa para fazê-lo; dos filmes que assistimos e livros que lemos às palavras que usamos para nos dirigir aos amigos ou aos filhos. Se o politicamente correto representou um avanço em termos civilizatórios, não é menos verdade que instituiu um ambiente policialesco e denuncista em nossa sociedade, em especial em nossas escolas e universidades.
Os crimes cometidos pelo Ministério Público e por Juízes com complexo de herói, numa empreitada messiânica para combater a corrupção, não são apresentados e discutidos no contexto de um debate profundo sobre nossas instituições, sobre a divisão dos poderes e sobre a cultura política que nos define. Ao contrário, eles são usados para desviar o foco e justificar práticas nada republicanas de conluio entre entes privados e estruturas estatais, entre servidores dos altos escalões do governo e a banda mais podre do empresariado nacional. Práticas que marcaram a alma dos governos petistas a partir de 2003.
Centralizadora da oposição, a esquerda terá, nos próximos anos, importância histórica em nosso país. Mas precisa entender que a derrocada do atual governo, que parece cada vez mais inevitável, não é apenas uma oportunidade para seu retorno ao poder. Essa derrocada tem grande potencial para levar com ela toda a institucionalidade democrática, o que significa que, depois da esquina, pode não haver democracia para governar.
A esquerda precisa reconhecer que tem grande parcela de responsabilidade pelo desgoverno que temos hoje. Os votos que o elegeram não foram apenas, e talvez nem principalmente, votos em Bolsonaro. Foram votos contra o PT, contra a esquerda, contra “tudo isso daí”.
Essa mesma esquerda precisa se repensar, precisa se renovar, precisa fazer uma ampla e profunda autocrítica. Precisa compreender que a democracia não é uma luta messiânica do bem contra o mal que justifica tudo em nome de um projeto, por mais nobre que ele possa ser. Precisa aprender com os erros que cometeu e com os erros que o atual governo vem empilhando dia após dia.
Se for capaz disso, talvez consiga aglutinar a representação dos brasileiros que não concordam com os rumos que o país e seu governo vêm tomando, os quais crescem em número a cada dia.
Bolsonaro e seu governo caminham a passos largos para a autodestruição. Resta saber se, depois da esquina, os brasileiros terão uma alternativa democrática coerente e confiável para apoiar, ou se só lhes restará a adesão novamente messiânica a um governo dos quartéis.
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*Ivann Carlos Lago é sociólogo, mestre e doutor em Sociologia Política
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