Marina Silva, ex-senadora e ex-ministra, duas vezes terceira colocada em eleições presidenciais, é formalmente uma simples filiada à Rede Sustentabilidade, o 34º partido a ser registrado, na semana passada, pelo Tribunal Superior Eleitoral. A nova sigla, que usará o número “18” nas urnas no próximo ano, não tem um presidente oficial, mas Marina é o principal vetor para a legenda já contar com um senador e cinco deputados federais, e candidata presidencial quase certa em 2018.
Nesta entrevista ao Valor Pro, serviço de informação em tempo real do Valor, Marina estava acompanhada de seu assessor direto Carlos Vicente e de Bazileu Margarido, um dos porta-vozes credenciados pelo novo partido. Durante a conversa, Margarido disse que, caso tivesse sido eleita no ano passado, Marina teria credibilidade para propor um ajuste fiscal menos drástico que o tentado pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, porque já em seu programa de governo havia alertado para diversos desacertos da política econômica feita entre 2011 e 2014.
Marina disse que o Brasil hoje é um país cindido e que as votações que obteve nas duas últimas eleições presidenciais (19% em 2010 e 21% em 2014) mostram que este patamar é o piso, e não o teto para uma terceira via entre o PT e o PSDB na disputa pelo poder. O projeto petista se enfraqueceu, em sua visão, quando as políticas de inclusão social passaram a não se integrar mais com a manutenção dos fundamentos da economia, o que teria começado a ocorrer a partir de 2008.
A estruturação do governo a partir da divisão de espaços para partidos, setores e lideranças na Esplanada dos Ministérios é um traço comum dos governos tucanos e petistas e está na raiz da crise de governabilidade atual. Mudar este princípio de construção do governo, na visão de Marina Silva, é a razão maior pela qual o eleitorado pode procurar um caminho alternativo.
Marina vê uma presidente Dilma Rousseff isolada, que não dispõe mais de uma cota pessoal no ministério que arquiteta. Diz que a presidente sofre mais com a ameaça interna, com as cobranças dentro do PT por mudanças na política econômica, do que com a externa, capitaneada pelas oposições. Procura demarcar distância em relação ao impeachment. A seguir trechos da entrevista concedida ao Valor PRO:
Valor: Qual consequência podemos ter na maneira de empreender no Brasil como decorrência do escândalo da Operação Lava-Jato?
Marina Silva: Ainda temos uma longa jornada. Primeiro é preciso que as investigações possam acontecer com independência e rigor, para que, de fato, este seja um caminho sem volta. Que não reste dúvida nem para os agentes públicos, nem para os privados sobre o fim da impunidade, o que pode levar a mudanças estruturais para prevenir e combater a corrupção. Tudo depende desse esforço exemplar que está sendo feito. A mudança de postura vai acontecer quando não restar nenhuma dúvida que as instituições brasileiras estão preparadas para não deixar a corrupção passar nas malhas da justiça e dos órgãos de controle. Boa parte dos problemas é pela expectativa de impunidade.
Valor: A proibição ou limitação severa das contribuições privadas em campanhas eleitorais, em discussão no Legislativo, já não é uma consequência da Lava-Jato?
Marina: Este debate já estava colocado há tempo. Em 2010, desenvolvemos um sistema de colaboração para as campanhas, que utilizamos também em 2014, e conseguimos 13% dos nossos recursos de pessoas físicas. É fundamental estabelecer a lógica de muitos contribuírem com pouco, para que ninguém se sinta dono do candidato. Nesse sentido, a combinação entre o financiamento público e as contribuições de pessoas físicas é um caminho.
Valor: A senhora coloca-se contra o impeachment da presidente…
Marina: Olha, as investigações estão em curso, o processo está em aberto. O impeachment é fruto de algo que se explicita a partir de um processo de investigação, não é algo que se fabrica. Não se fabrica porque a gente precisa respeitar os processos constitucionais da nossa democracia. Não posso mudar o presidente porque discordo dele. Não tem ninguém condenado a priori e ninguém com atestado de idoneidade. Hoje temos uma realidade em que o partido da presidente tem dois tesoureiros presos e várias lideranças comprometidas, e o partido do vice tem duas de suas principais lideranças no processo da Lava-Jato. Não se pode ter dois pesos e duas medidas.
Valor: Um dos primeiros ataques que sofreu na sua campanha está relacionado ao caráter minoritário no Congresso que seu governo teria, com a promessa de a senhora governar só com os melhores, e não com os mais fortes de cada partido…
Marina: Esta ideia de que os melhores nem sempre são os mais fortes faz parte da crise que vivemos hoje. Os melhores não estão sendo devidamente fortalecidos. E para fortalecê-los não é necessário alguém ungido como o melhor, mas que tenha uma trajetória de vida compatível com aquilo que pensa e diz. Não é errado você compor governos com os diferentes partidos, mas a forma como se faz esta composição no Congresso e no governo é que precisa ser mudada. Hoje a composição é feita com base na distribuição de pedaços do Estado para lideranças, setores e partidos. Não tem nenhum problema em um partido se alinhar em torno de um projeto. Agora, quando a lógica é a de dar um pedaço do Estado e em troca você me apoia, acontece o que está acontecendo. A presidente, com 39 ministérios distribuídos em dez partidos, não tem a maioria que achava que tinha e que lhe asseguraria tranquilidade em seu governo. Aos poucos vai ficando com a sua própria cota pessoal, que é ela própria.
Valor: Durante a campanha, a senhora repetiu que era melhor perder ganhando do que ganhar perdendo. Dilma ganhou perdendo?
Marina: Ela ganhou perdendo pela forma como ganhou, sem apresentar programa de governo e pelas composições que fez. Ganhou perdendo pela forma como fez a disputa, extrapolando os limites da ética para ganhar poder. Agora acho que além de estar governando perdendo, a presidente começa a perder para ela mesma. Quando ela diz que não existe crise estrutural no Brasil, está perdendo para ela mesma. O Brasil tem problemas estruturais gravíssimos e ter uma visão que releva este problema explica por que relevaram a amplitude da crise de 2008 e porque se trouxe o país à situação em que estamos hoje, com nenhum investimento, crescimento zero e alta inflação. Um país em que se apresenta um orçamento com déficit de R$ 30 bilhões não tem problemas estruturais?
Valor: O ajuste fiscal atingindo a área social não seria uma contingência para qualquer presidente que fosse eleito no ano passado?
Marina: É preciso combinar as estratégias de crescimento. A gente tinha uma trajetória promissora neste sentido até 2008. Até então tínhamos uma composição do governo que ganhou com o governo que perdeu. Lula fez uma composição na prática, que não foi assumida quando fez a Carta aos Brasileiros, e quando parte da equipe econômica do Fernando Henrique ficou para dar suporte ao Palocci (Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda) ali teve uma clara composição. A partir de 2008 venceu a lógica de desconsiderar a integração entre os fundamentos da economia e a inclusão social, com prejuízo muito grande para as pessoas que dependem de investimentos para sair da fragilidade a que estão submetidas.
Valor: Mas como poderia ser enfrentada uma circunstância em que se tem um déficit de 7%, como era o caso de Dilma no início do ano?
Marina: Teria uma maneira de ser diferente, obviamente se estratégias inadequadas não tivessem sido levadas a cabo. Hoje se entende porque é que a presidente falava com tanta convicção que qualquer um que ganhasse o governo, que não fosse ela, iria elevar juros, ter o risco da inflação, do desemprego, do corte de programas sociais. Falava com conhecimento de causa porque sabia qual era a degradação que tinha sido produzida durante seu primeiro mandato.
Valor: Como avalia Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso como figuras históricas?
Marina: A História sempre vai cobrar de um presidente o papel que cumpriu antes e depois do cargo. Tanto Fernando Henrique quanto Lula continuam cumprindo um papel. Este é o momento de buscar credibilidade. A credibilidade virá assumindo os erros cometidos e o reconhecimento de que não há como resolvê-los sem buscar o apoio das diferentes forças políticas no país. Quem está na oposição não pode instrumentalizar a crise. Resolver a crise, para mim, é algo montado em dois trilhos: apoio às investigações, respeitando autonomia das instituições, e o caminho do trilho da Nação. Fernando Henrique tem tido uma atitude republicana de não ir pelo caminho fácil do quanto pior melhor, e pagado um preço alto por sua atitude. Fico com temor de ver que, no momento em que a presidente, com as dificuldades que tem, manda uma peça orçamentária que contribui para o rebaixamento do nosso grau de investimento, faz um plano de reação e setores ligados a Lula apresentam outro programa. Fica uma fragilização constante. A presidente sofre vários golpes. É o golpe de sua base de sustentação no Congresso, o golpe de seus aliados e o de pagar pelos seus próprios erros.
Valor: A presidente tem Lula e Fernando Henrique contra ela neste momento, na prática?
Marina: FHC tem tido atitude responsável. A presidente sofre uma oposição interna muito mais forte que a oposição externa. A externa é visível e não tem o alcance de dizer que o slogan “Pátria Educadora” é só um slogan.
Valor: A senhora foi ministra cinco anos do governo Lula e teve vários enfrentamentos com grupos econômicos. Tem condições de avaliar se Lula tinha uma conduta própria ou imprópria com estes grandes grupos empresariais? Ele lhe deu autonomia para lidar com esses interesses?
Marina: Enquanto fui ministra, tive autonomia para fazer o meu trabalho de defesa do meio ambiente. Foi assim que fizemos licenciamentos complexos, como o das usinas de Santo Antônio e Jirau. Foi um processo difícil, havia uma pressão enorme para que se desse a licença de qualquer jeito e eu era o tempo todo desqualificada como sendo a ministra dos bagres. Reduziam todos os problemas de um licenciamento como aquele à questão dos bagres, que são importantes, mas ali tinha problema de sedimentos que não estava resolvido, de mercúrio, malária, de populações. Demos a licença com mais de 40 condicionantes, numa demonstração que não estávamos ali nem para facilitar nem para dificultar, mas para fazer o que era certo.
Valor: Teve respaldo de Lula?
Marina: É impossível um ministro do Meio Ambiente fazer o que foi feito se não tiver respaldo do dirigente maior. Saí em um momento difícil, quando começaram as pressões vindas do Ministério da Agricultura, dos governos do Mato Grosso e Rondônia e do ministro Mangabeira Unger, para que o presidente revogasse medidas. Percebendo que o presidente podia ser induzido ao erro, pedi para sair do governo. E saindo, a sociedade brasileira deu respaldo às medidas e elas foram mantidas. E eram tão consistentes que permaneceram mesmo quando se tentou removê-las.
Valor: A senhora licenciou as usinas do Madeira. Licenciaria Belo Monte? Licenciaria Tapajós?
Marina: Licenciamento não se faz a priori. Licenciamento se analisa no mérito. Para ser viável, tem que responder aos aspectos sociais, ambientais, econômicos, culturais, a todas as questões que estão em volta. Belo Monte é um processo complexo, que não resolveu os problemas. Agora o Ibama tomou uma atitude correta ao não conceder a licença de operação porque não foram cumpridas as condicionantes. Tive a possibilidade de ver no mérito cada um dos licenciamentos dos quais fiz parte. Estes eu trataria com o mesmo rigor com que tratei os outros.
Valor: E as usinas do Tapajós?
Marina: É um empreendimento igualmente complexo, com as mesmas dificuldades, e não pode passar por cima das questões sociais e ambientais, e principalmente, dos direitos dos índios.
Valor: A senhora teve quase a mesma votação, em 2010 e 2014. O que está faltando para ir além? O que falta para a terceira via ir além deste binômio que o Brasil vive há 20 anos e recolher os votos dos desiludidos? A decepção com Dilma e com o PT é um catalisador suficiente para acabar com a polarização?
Marina: Na primeira tive 19% e na segunda, 21% dos votos. Não estancou, ali se abriu uma porta. Essa proposta, mesmo com 1,20 minuto de televisão em 2010, e em 2014 com 2 minutos contra 12 minutos da candidatura oficial, consegue 21%, em uma das campanhas mais difíceis que um projeto político pode alcançar em uma democracia. Um processo que não era nem de destruição, era de aniquilação moral e política. Isso não é estancar. É começar a sair do terreno da opção entre PT e PSDB. Historicamente o Brasil vive a saga da polarização: Império e República, Arena e MDB, PT e PSDB. O Brasil hoje é um país cindido e isso é algo que precisa ser reparado. Por isso fui procurar o Eduardo Campos quando foi negado o registro da Rede, eu poderia ter saído por um dos partidos que me convidaram. Naquela época estava com 26% das intenções de voto, e ele, com 4%. Para mim, não é onde esbarra, é onde começa.
Valor: A senhora se arrepende do apoio a Aécio Neves no segundo turno de 2014, tendo em vista a maneira como ele conduz a oposição?
Marina: O apoio dado foi em cima de compromissos assumidos, aliás um compromisso que não foi devidamente registrado como deveria. Se Lula fez uma Carta aos Brasileiros dizendo ao povo que ia manter os ganhos da economia, Aécio fez uma Carta aos Brasileiros dizendo que manteria os ganhos da inclusão social. Para mim, foram dois momentos importantes que sinalizaram algo que, infelizmente, depois foi sendo desconstruído. Não se faz mudanças relevantes sem preservar conquistas.
Valor: Quando diz que não foi preservado, está dizendo que não foi preservado por ele?
Marina: Não foi preservado na cultura política de nosso país. O PT fez uma carta prometendo manter políticas e depois amaldiçoou a herança. E ninguém viu na carta do Aécio um gesto similar. Ele não ganhou o governo, mas fez um gesto um dia desses, ao se posicionar contrário à PEC 215, que transfere do governo para o Congresso a demarcação das terras indígenas.
Valor: O que achou da meta de cortes de gases-estufa, divulgada agora? Como implementar?
Marina: Tudo o que vem sendo feito tem como plataforma de alavancagem a redução do desmatamento, sem isso seria praticamente impossível o Brasil se comprometer como faz hoje. Ser um país em desenvolvimento, que assume o compromisso de redução absoluta de gases-estufa, é positivo. O problema é que está muito aquém do que se poderia fazer. E muitas vezes, anúncios são feitos pelo governo e não são implementados. Quais serão os passos para o Brasil alcançar a meta que se comprometeu até 2030? No desmatamento, não pode ser apenas com ação de comando e controle. Há outras agendas que precisam ganhar força, como a boa proposta do Programa ABC, mas que não tem recursos. E a criação e implementação de unidades de conservação e terras indígenas? Como o Brasil fará para ampliar investimentos e diversificar a matriz energética? O compromisso poderia ser maior. E não é ambição, é compromisso do Brasil, pelo seu próprio bem. Basta ver a escassez hídrica em São Paulo, Rio e Minas. Compromisso de preservar florestas e biodiversidade, e para que nossa agricultura possa ser próspera.
Valor: E a conferência de Paris? Que expectativa tem?
Marina: Os compromissos assumidos até agora não dão conta do desafio de fazer com que a temperatura fique abaixo dos 2°C. Pelo o que foi apresentado está em 3°C ou 4°C. Isso terá que ser reajustado. O acordo não pode permitir a migração das emissões de gases-estufa de uma região para outra. E isso só será possível com a precificação do carbono, algo global, para que não exista a possibilidade de vazamento. O acordo tem que ter o compromisso dos países ricos para ajudar a financiar os pobres e em desenvolvimento a fazer a transição para o baixo carbono. É uma expectativa positiva para a COP 21, mas começamos no déficit.
Valor: Sua candidatura à presidente, em 2018, já é uma possibilidade que deva ser examinada?
Marina: Hoje eu não tenho essa resposta. Quero continuar contribuindo com o debate de como fazer do Brasil um país capaz de buscar uma nova governabilidade, que seja com base em programa e não essa pragmática, com base em distribuição de pedaços do Estado, que está levando o país para o fundo do poço. Mas não vou ficar na cadeira cativa de candidata. Estou falando como alguém que tem participação e responsabilidade política. Quem viveu a experiência que vivi em 2014, tem que aprender algo. Não pode ser uma disputa para fazer mais do mesmo. Tem que ser uma disputa para melhorar a qualidade da política, das instituições e da representação da sociedade.