Esse debate, segundo os autores de um artigo publicado na revista “Estudos Avançados”, pode ajudar a frear novas pandemias e para que sejam postas em prática medidas efetivas que atenuem e diminuam a crise da biodiversidade
Crise é instabilidade, desequilíbrio, tensão, conflito, dificuldade, desordem. Qualquer um desses substantivos reflete o momento pelo qual todos os países do planeta estão passando. E a crise não se resume na atual pandemia, mas em vários setores da vida humana – na economia, na política, na saúde em geral, no meio ambiente, na sociedade e na cultura. Para os autores de um artigo recém-publicado na revista Estudos Avançados, se a crise de saúde e o empenho de cientistas, médicos e especialistas no combate à covid-19 deve ter solução nos próximos dois ou três anos, não se pode dizer o mesmo quanto às outras crises mundiais citadas, pois é preciso haver mudanças profundas ligadas ao desenvolvimento global sustentável e a maneira como o planeta lida com seus recursos naturais.
No artigo, os autores explicam que “os vírus são um componente da biodiversidade e as entidades biológicas mais abundantes da Terra”, proliferando-se mais em países onde há desequilíbrios socioeconômicos e o meio ambiente é constantemente alterado negativamente pelo homem. O texto se dispõe a analisar minuciosamente as relações entre a biodiversidade, a covid-19 e o bem-estar humano, questões raramente analisadas nas incontáveis publicações sobre a pandemia. Para os autores, esse debate contribui tanto para frear novas pandemias quanto para que sejam postas em prática medidas efetivas, no sentido de atenuar e diminuir a “crise da biodiversidade”.
Essa crise, no Brasil, está diretamente ligada à destruição de nossos biomas, “a redução, fragmentação e perda de hábitats”, agravadas pelas mudanças climáticas em todo o planeta e a extinção de espécies. “O Homo sapiens é a única espécie no planeta responsável pelas pandemias observadas no último século e pela atual pandemia da covid-19”, afirmam os autores. A relação homem e ambiente está deteriorada, requerendo urgentes mudanças, lembrando que o desenlace positivo para essa questão deve “demorar mais de um século”, além de, até agora, a crise da biodiversidade permanecer sem respostas. A biodiversidade é uma via de mão dupla pois, se nela encontramos a origem dos vírus, também é uma fonte de “novos antitrombóticos, antimicrobianos e antivirais”, “uma grande farmácia”.
Em relação às contaminações, destaca-se o papel dos mercados onde se comercializam animais vivos ou recém-abatidos que convivem com os funcionários ou os consumidores, normalmente encontrados na Ásia, com o agravante da falta de higiene e vigilância sanitária. Porém, não é o caso do Brasil, e embora se encontre, em algumas regiões, o consumo de carnes de animais silvestres, “não temos a tradição de manter esses animais vivos”. Apesar disso, a grande desigualdade social, econômica e a destruição do meio ambiente possibilitam que “novos patógenos que vivem em espécies silvestres pulem para os hospedeiros humanos”.
Segundo os autores, “se por um lado a biodiversidade é a origem dos vírus, sem sombra de dúvidas, ela é também uma grande farmácia, e pode ser uma grande fonte de novos antitrombóticos, antimicrobianos e antivirais”. Os pesquisadores apontam que muitas moléculas usadas em antivirais utilizados nos tratamentos de HIV, herpes, hepatite B e C e influenza A e B têm origem na biodiversidade. “Atualmente há cerca 40 compostos internacionalmente aprovados, mas eles estão envolvidos na terapêutica de apenas 10 viroses. A situação é ainda mais crítica no caso de doenças negligenciadas, onde, por falta de interesse econômico, não há sequer linhas de pesquisa continuadas.”
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Com crises generalizadas no planeta, é imprescindível a elaboração de um plano de desenvolvimento que não pode prescindir da sustentabilidade e utilização dos recursos naturais de maneira que estes não sejam destruídos. É essencial a criação de “estratégias de prevenção de novas pandemias originadas por zoonoses”, tais como a interdependência entre a manutenção da biodiversidade e a relação saudável entre homem e ambiente. Finalizando, propõe-se a criação de um plano econômico, na abordagem que os autores denominam como “saúde única” – “One Health”, abrangendo a interação de vários setores de políticas públicas, vigilância sanitária, no entendimento da indispensável integração entre saúde, ser humano e biodiversidade, tanto no Brasil como no mundo.