O subcomitê da Organização das Nações Unidas (ONU) para a prevenção da tortura pediu reuniões com a Missão Permanente do Brasil em Genebra para cobrar explicações sobre um recente decreto do presidente Jair Bolsonaro, que esvaziou o Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura (MNCPT).
Segundo comunicado da ONU, divulgado nesta segunda-feira (1º), o “Subcomitê de Prevenção da Tortura tem sérias preocupações de que essas medidas pareçam enfraquecer o mecanismo preventivo do Brasil e, com ele, a prevenção da tortura no país”.
Pelo decreto presidencial 9.831 de 11 de junho, Bolsonaro exonerou 11 técnicos do órgão e extinguiu a remuneração dos especialistas, responsáveis por monitorar a situação do combate à tortura no país em diversas instituições de privação de liberdade, como presídios e hospitais psiquiátricos.
Críticos da medida argumentam que isso significa concretamente o fim do combate à prática de tortura no Brasil.
A decisão do órgão da ONU foi tomada durante sessões fechadas em junho, mas só foi oficialmente comunicada agora. Fontes diplomáticas ouvidas pela BBC News Brasil disseram que a representação do Itamaraty em Genebra já fora informada de que teria que se explicar e demonstrou “insatisfação”.
À BBC News Brasil, o Ministério das Relações Exteriores disse que o MNPCT continua ativo, como órgão do Ministperio da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, “sem quaisquer prejuízos ao Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura”.
“A exoneração dos cargos em comissão, com a manutenção da função de perito como serviço público relevante, apenas altera um formato, de modo que o serviço dos peritos continuará sendo desempenhado regularmente, mas de forma não remunerada, visto que a Lei n. 12.847/13 e o Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura não preveem remuneração”, disse o ministério.
‘Brasil tem obrigação de ter mecanismo de combate à tortura’
Em entrevista à BBC News Brasil, o membro do Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU, o diplomata peruano Juan Pablo Vegas, que está baseado no Chile, explicou que é uma obrigação apresentar respostas à ONU e que espera “transparência” das autoridades brasileiras para entender o corte de gastos.
“O Brasil é um país que tem obrigações internacionais de defesa dos direitos humanos. Enquanto Estado tem a obrigação de ter um mecanismo nacional de prevenção e combate à tortura. Não é uma questão de opinião pessoal do presidente”, reforçou.
Segundo Vegas, o subcomitê tem tentado manter o diálogo aberto com a diplomacia brasileira. Ainda não há, porém, por parte do Itamaraty uma clara reciprocidade em explicar à ONU as razões por trás da atitude do decreto.
“Estamos preocupados com a situação e expressamos isso à missão em Genebra”, disse Vegas.
À BBC News Brasil fontes ligadas à missão em Genebra afirmaram que o governo alega que as mudanças são para “viabilizar o estabelecimento de mecanismos em Estados com menos recursos”.
Questionado sobre o temor de ver o retorno da prática institucionalizada de tortura no Brasil, como aconteceu nos anos da ditadura, Vegas respondeu: “Eu sou latino-americano também. No meu país aconteceram situações semelhantes”.
“Sou particularmente sensível a essas questões. Só posso esperar que os mecanismos estabelecidos pela ONU e outras organizações poderão ajudar a evitar que situações que ocorreram no passado voltem a se repetir”, disse.
ONGs fizeram denúncia às Nações Unidas
O decreto de Bolsonaro motivou uma denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro perante as Nações Unidas, feita pelas ONG Justiça Global, Terra de Direitos e Instituto de Defensores de Direitos Humanos, nos dias seguintes à publicação.
Em carta ao relator especial para tortura, Nils Melzer, as ONGs afirmaram que “as organizações de direitos humanos brasileiras receberam o decreto presidencial recém-publicado como uma ameaça direta aos valiosos trabalhos que o mecanismo tem feito nestes anos”.
“Na prática, este decreto parece a sentença de morte para uma instituição com uma atribuição crucial, proporcionando um mínimo de proteção às pessoas privadas de liberdade”, disse na época em comunicado Gerald Staberock, Secretário Geral da OMCT, Organização Mundial contra a Tortura, ONG internacional que atua em conjunto com a Justiça Global.
No lastro da denúncia, a chefe do escritório sul-americano do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), Birgit Gerstenberg, se pronunciou em 17 de junho igualmente condenando a ação brasileira.
Gerstenberg disse em comunicado que achava “preocupante” a decisão de Bolsonaro, pois “questiona” a existência dos mecanismos de proteção contra a tortura.
Mecanismo tem atribuição de fiscalizar violações de direitos humanos
Os cargos do MNPCT tinham salários de R$ 10 mil, em média, e foram remanejados para o Ministério da Economia. As vagas passaram a ser preenchidas por voluntários.
O MNPCT está ligado ao Ministério Público e ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pasta da ministra Damares Alves.
Criado em 2013, o mecanismo tem a incumbência de fiscalizar e relatar violações de direitos humanos e de prevenir a prática de tortura em instituições de privação de liberdade individual, como penitenciárias, internatos para menores infratores e hospitais psiquiátricos.
O Subcomitê de Prevenção da Tortura da ONU monitora a adesão dos Estados ao Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura. Esse documento foi ratificado por 90 países até o momento. O Brasil o ratificou em 2007.
Segundo informou a ONU nesta segunda-feira, o “subcomitê ainda está envolvido com as autoridades nacionais para entender melhor os antecedentes e os motivos desses desenvolvimentos, com o objetivo de garantir que o mecanismo preventivo brasileiro possa funcionar de maneira eficaz e de acordo com as disposições do Protocolo Facultativo”.
Composto por 25 membros, o subcomitê reúne especialistas independentes em direitos humanos vindos de todo o mundo. Eles atuam em caráter pessoal e não como representantes dos Estados-membros.
O mandato do subcomitê é realizar visitas aos estados membros da ONU, durante os quais os integrantes poderem ter livre acesso a locais onde pessoas possam estar sendo privadas de sua liberdade, ou tendo seus direitos humanos desrespeitados. Os membros preparam relatórios sobre a situação nos países.
Durante a reunião do subcomitê que ocorreu de 17 a 21 de junho em Genebra, foi acertado que os membros irão dedicar as próximas visitas à Austrália, Croácia, Líbano, Madagascar, Nauru e Paraguai. O Brasil já foi visitado pelo subcomitê duas vezes, entre 19 e 30 de setembro de 2011 e entre 19 e 30 de outubro de 2015.
(Por Marina Wentzel De Basiléia (Suíça) / BBC News Brasil)