Foi do meia Beethoven Javier, filho de um comissário de polícia, a iniciativa. O Defensor havia acabado de derrotar o Rentistas por 2 a 1 no estádio Centenário e conquistado o título uruguaio de 1976.
Era momento histórico não apenas porque um clube pequeno de Montevidéu havia vencido o torneio. O Defensor quebrava ali um duopólio de 44 anos de Nacional e Peñarol. Era a primeira vez nos anos do profissionalismo do futebol do país que outro clube fora da dupla de grandes ganhava o título.
Mas a vitória era também um triunfo contra a ditadura militar do Uruguai.
“Aquele time era o mais politizado da história do futebol uruguaio em um momento muito conturbado do país. O técnico era comunista, o presidente era sindicalista, outros jogadores tinham familiares na luta contra a ditadura e havia Graffina, volante abertamente socialista e que comemorava gols com o punho cerrado, no alto”, afirma o historiador Gerardo Caetano.
O gesto que marcou aquele título do Defensor e idealizado por Beethoven, morto em 2017, foi dar a volta olímpica ao contrário, em sentido anti-horário. A simbologia era mostrar que o troféu ia além do futebol. Tratava-se de um símbolo contra status quo vigente no Uruguai.
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Por isso que até hoje, nos arredores do estádio Luis Franzini, casa da equipe, estão pichações com lembranças da conquista e a afirmação de que é um clube “campeão anti sistema”.
O maior símbolo do time era o treinador José Ricardo de León, que só não dirigiu a seleção uruguaia após a conquista com o Defensor por ser filiado ao Partido Comunista.
“Ele era um mestre em manejar as relações humanas e era um revolucionário no futebol. Foi ele o primeiro técnico na história do futebol sul-americano a implantar um sistema de pressão sobre o adversário para recuperar a bola. Retirou muitas coisas do basquete porque quando jovem jogou este esporte”, lembra Santiago Díaz, autor do livro “Una vuelta a la historia, Defensor del 76: memorias de una hazaña em dictadura” (Uma volta na história, Defensor de 76: memórias de um feito na ditadura).
De León era uma figura peculiar até para os padrões do Defensor. Estava sempre com um livro na mão, estudava filosofia, falava inglês, francês e russo, era fanático por Charles Chaplin e sempre, sem exceções, fazia as refeições de terno e gravata.
A ditadura militar no Uruguai durou entre 1973 e 1985, período em que o país teve presidentes civis, mas o poder estava nas mãos dos militares. Foram cerca de 100 pessoas mortas pelo regime e 174 desaparecidos. Os partidos políticos foram colocados na ilegalidade, assim como os sindicatos. A liberdade de imprensa foi suspensa.
“O cenário do futebol uruguaio era tão dominado por Nacional e Peñarol que havia a Copa Montevideana. Era um troféu dado para o terceiro colocado. Os dois primeiros eram sempre os mesmos. E as equipes menores faziam festa quando a conquistavam. Até que chegou o Defensor para mudar isso”, completa Díaz.
A frase “contra tudo e contra todos” é comum no futebol, mesmo que seja mentira. Mas no time comandado por de León chegou perto da verdade. Era comum a polícia aparecer nas concentrações ou hotéis onde os jogadores estavam hospedados para fazerem revistas e perguntas sobre familiares dos integrantes do elenco. Os jogos contra Nacional e Peñarol não podiam ser realizados em qualquer estádio que não fosse o Centenário, o que dava vantagem aos dois grandes, que tinham no local a sua casa.
A questão política fez o Defensor perder jogadores durante o torneio, como o atacante Julio Filippini. Em sua estreia como profissional, ele anotou o gol de empate contra o Nacional. Um ponto que se tornou fundamental para o Defensor ser campeão.
Depois da partida, dedicou o gol ao irmão Eduardo. O que poderia ser normal. Mas neste caso, não era.
“Eduardo era integrante do Movimento de Liberação Nacional Tupamaros, que pregava a luta armada contra a ditadura, e estava detido. Era um preso político”, explica Caetano.
Julio foi chamado para depor pela polícia no dia seguinte. Com medo, o pai do jogador, que era militar, o mando para a casa de amigos no Paraguai. Sua partida contra o Nacional foi a primeira e a última como profissional.
Nem todos eram de esquerda no elenco. De León percebeu que o time precisava de uma referência no ataque. Alguém experiente. Foi quando tirou quase da aposentadoria o artilheiro Luis Cubilla, 36 anos e veterano de três Copas do Mundo (1962, 1970 e 1974). Conservador e simpatizante do Partido Colorado (de direita), ele se deu bem com de León e os outros jogadores.
“Já estava gordo, lento e não voltava para marcar. Mas sem ele, o título não teria acontecido”, constatou o treinador anos depois.
A volta olímpica ao contrário acabou se tornando um símbolo contra a ditadura e uma luta diante do sistema vigente no Uruguai. O narrador uruguaio Victor Hugo Morales, que depois se mudaria para a Argentina, definiu como “uma cena inesquecível”.
Os presos políticos na casa de detenção ironicamente chamada de “liberdade” pediam que os familiares mandassem frutas e outros alimentos enrolados em jornais que descreviam o título do Defensor, em uma das vezes em que o futebol serviu como ferramenta pela democracia.