Por Ivan Carlos Lago – Opinião
Um dos debates mais instigantes para os pesquisadores que, como eu, se dedicam à investigação das relações entre cultura e comportamento sociopolítico, é aquele em torno das “heranças culturais”. Trata-se de tentar compreender como o passado comum e seus mitos, as tradições compartilhadas, o imaginário religioso, o padrão de desenvolvimento institucional e tantos outros fatores estruturais ajudam a configurar os enquadramentos por meios dos quais um determinado grupo percebe o mundo, a si mesmo e aos outros, e como age em função disso.
É esse tipo de abordagem que está na base, por exemplo, das tentativas de compreender o racismo arraigado na cultura brasileira tomando, como um de seus elementos constitutivos mais importantes, nosso modelo de colonização e nossa herança escravocrata.
Os efeitos da escravidão no imaginário coletivo têm variações significativas entre as sociedades que a praticaram. Roberto DaMatta, por exemplo, mostrou como o racismo se manifesta de maneira distinta nos Estados Unidos e no Brasil, embora seja elemento marcante e definidor das relações sociais nos dois países.
Hoje quero tratar da forma como nossa herança escravocrata continua a influenciar a maneira como o brasileiro médio percebe não apenas o negro especificamente, mas o pobre como categoria social ainda mais ampla. Claro, não entro aqui no debate sobre a sobreposição entre cor e condição econômica no Brasil, já demonstrada e plenamente comprovada como um fato estruturante de nossa desigualdade. A esmagadora maioria dos pobres em nosso país é de negros, e a grande maioria dos negros é pobre. Contudo, para as reflexões que seguem, tomarei a pobreza em seu sentido econômico como categoria de análise.
A relação entre senhores e escravos, no Brasil, não era apenas uma relação entre pessoas em condições econômicas distintas. Ela sempre foi percebida também como uma relação entre diferentes níveis de moralidade. Os escravos eram vistos como pessoas inferiores em todos os sentidos, o que inclui a noção de caráter. Eram seres degenerados, inclusive frequentemente desumanizados.
Essa característica, que remete ao período da escravidão, não desapareceu com o fim daquele regime. Ao contrário, ela se consolidou e se arraigou ao imaginário da população. No Brasil, pobres não são apenas pessoas sem dinheiro; são pessoas consideradas inferiores, ignorantes, incompetentes, não confiáveis, moralmente degeneradas.
Como fenômeno social, a pobreza em nosso país é um excelente fator de marketing e aceitação. Ela é objeto de curiosidade, de observação. Novelas, filmes, peças de humor, documentários… Sempre tiveram na pobreza e na miséria econômica uma fonte de inspiração e garantia de sucesso. Mas isso nunca foi capaz de modificar o desprezo profundo que principalmente as classes média e alta sempre nutriram pelo pobre como ser humano. A elite brasileira nutre certo fascínio pela pobreza, mas tem ojeriza, desprezo e nojo pelos pobres, de quem se considera moralmente superior.
É assim que, por exemplo, vestir-se de mendigo maltrapilho é garantia de sucesso no carnaval, como se isso satisfizesse uma curiosidade profunda e nutrisse um desejo inconsciente de sentir, por algumas horas, como é viver aquele “estilo de vida”. Mas em todos os outros dias do ano o mendigo e os miseráveis são objeto de xingamento, vistos como sujeira nas cidades, tratados como lixo, tornados invisíveis e desprezados sistematicamente.
E o mesmo profissional liberal que se veste de mendigo no carnaval, que vai à igreja e reproduz um discurso religioso de valorização da pobreza como fator de dignificação, é o que defende o extermínio de negros, de moradores da favela, de “marginais”. Afinal a “marginalidade”, em nosso imaginário, sempre esteve associada aos pobres, aos moradores da periferia. E a “marginalidade”, assim como a pobreza que lhe está associada, não se combate com políticas de assistência e de inclusão; se combate com políticas de extermínio.
Mas, voltemos à visão dos pobres como seres inferiores. Ela é tão forte em nossa cultura que chega a se propagar até mesmo entre os pobres. Os níveis de pobreza, como sabemos, são muitos, o que assegura que, independentemente da condição em que um cidadão se encontra, sempre é grande a probabilidade de que alguém esteja ainda pior. Por isso é comum vermos pobres com nojo de pobre, pessoas que por estarem, mesmo que temporariamente, em situação econômica ligeiramente mais confortável que o vizinho, já se acham melhores que ele e no direito de reprimi-lo moralmente por sua condição.
Basta encontrar alguém “mais pobre” do que ele que o brasileiro já se vê na condição de superior e se sente à vontade para discursar sobre os maus hábitos dos “pobres”, sobre sua falta de iniciativa e de higiene, sobre seus hábitos reprodutivos e número de filhos, sobre sua falta de “disposição” para trabalhar…
Por isso damos tanta importância a coisas que simbolizam nossa suposta “condição melhor”. Afinal, afirmar nossa condição econômica passa a ser uma forma de indicar ao mundo a natureza de nossa fibra moral. O sujeito ganha 50 reais de aumento no salário e a primeira coisa que faz é contratar uma faxineira para fazer os trabalhos considerados degradantes, como esfregar o chão e limpar o banheiro. Afinal, trabalhos degradantes são coisa de pobre, pois pobre é moralmente degradado. Dados da OMC, por exemplo, mostram que mesmo estando longe de ser um país rico, o Brasil é a nação do planeta com o maior número de faxineiras e empregadas domésticas…
E assim construímos todo um modelo mental, um imaginário coletivo de significação da condição econômica dos outros a partir de referências morais. Afinal, como somos um país onde as pessoas são livres, a pobreza só pode ser resultado de degeneração moral, de alguma falha no caráter. Assim como a riqueza é sempre vista com inveja e admiração, nunca com desconfiança. Afinal, quem rouba são apenas os pobres, que praticam crimes porque gostam ou porque não são “gente de bem”. Além dos políticos, é claro.
Empresários, médicos, advogados são gente de estirpe superior. Jamais sonegam impostos, não tiram proveito das pessoas, não enganam ninguém, nunca faltam com a ética, são seres humanos exemplares, não tratam seus empregados com desrespeito e preconceito, não se acham superiores. Quando o médico, por exemplo, dá uma lição de moral sobre os hábitos alimentares a um pobre que o consulta por causa de uma gripe forte, ele só está dando uma abordagem integral ao seu estado de saúde, jamais se considerando na condição de ser superior que tem o direito de dizer aos outros como devem viver suas vidas.
Essa marca cultural brasileira sempre permeou nossas relações sociais, sempre esteve na base dos arranjos que organizaram nossa vida política, nosso mundo do trabalho. Não é algo novo. O que temos de novo é o fato de que, ao contrário de outros tempos, esse elemento cultural deixou de ser algo velado, disfarçado. Hoje é algo que muitas pessoas fazem questão de assumir, de demonstrar, de orgulhosamente espalhar pelas redes sociais.
Talvez seja porque vivemos tempos em que o próprio governo toma a noção de que pobre é sinônimo de problema e causa dos males do país como parâmetro para governar. Afinal, como brilhantemente diagnosticou nosso ministro da economia, nem lidar com dinheiro os pobres sabem. “Basta ganhar um pouco de dinheiro que já saem gastando tudo”, ao contrário dos ricos, seres superiores e mais conscientes, que “se preocupam em investir e capitalizar”.
Essa ideologia é muito mais ampla. Sistema de previdência para amparar os pobres? Coisa de comunista que quer falir o Estado. Leis trabalhistas para proteger os trabalhadores pobres? Empecilho ao desenvolvimento econômico que os empresários brasileiros, esses seres angelicais e de moral elevadíssima, só não conseguem efetivar porque os direitos dos seus funcionários atrapalham. Educação pública? Desperdício de dinheiro, pois a lei diz que somos todos iguais e, portanto, todos devem cuidar da sua vida, empreender e ganhar dinheiro sem ajuda do governo. Políticas de combate a pobreza e às desigualdades? Absurdo comunista que usa os impostos dos “cidadãos de bem” para ajudar vagabundo preguiçoso.
Segundo essas visões de mundo, o Brasil só vai melhorar mesmo é quando acabar de vez com esse negócio de direitos, de proteção social, de combate à pobreza com políticas públicas, de educação gratuita, de proteção dos vulneráveis. Chega desse negócio de cobrar impostos dos “cidadãos de bem” para financiar políticas de combate à desigualdade. O dinheiro dos impostos deve ser usado para comprar mais armas e munição, e “mandar bala na bandidagem”. De preferência, “bem na cabecinha”.
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*Ivann Carlos Lago é sociólogo, mestre e doutor em Sociologia Política
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