Rápidos e acessíveis, testes começam a fazer sucesso entre brasileiros, mas trazem temor pelo uso dessas informações.
Anna Maria de Jesus, mãe da tataravó da catarinense Juliana Sakae, foi escravizada e viveu na atual Araquari, cidade de pouco mais de 30 mil habitantes, a 25 minutos de carro de Joinville, em Santa Catarina. A descoberta foi uma surpresa para a família: na região, fortemente colonizada por alemães, as pessoas e autoridades gostam de repetir que “Joinville não tinha escravos, pois o povo alemão era contra a escravidão” — ainda que a cidade tenha sido estabelecida por um senhor de escravos, Joaquim da Rocha Coutinho, em 1854.
Mas Sakae, que em 2015 começou uma ampla pesquisa sobre sua árvore genealógica, sentia-se intrigada com a história daquela Anna Maria de Jesus, que com um pai “incógnito” teve Thecla Maria de Jesus, sua tataravó. Quem era Anna Maria? E quem era o homem desconhecido? O mistério começou a ser desvendado quando ela encontrou o registro de 1883 do casamento de Thecla com Francisco Xavier Vieira. E lá estava escrito em bom (ainda que antigo) português que Thecla “foi escrava de José da Rocha Coitinho [sic] e filha de Anna escrava do mesmo Rocha, e de pai incógnito”.
Além da surpresa de ver que a penta e a tataravó foram mulheres escravizadas, Sakae começou a suspeitar que o tal pai incógnito poderia muito bem ser José da Rocha Coutinho ou alguém da família Rocha Coutinho. A confirmação de que a suspeita tinha fundamento veio no ano passado, quando o tataraneto de José da Rocha Coutinho, que mora em Fortaleza, fez um teste genético de ancestralidade, a pedido de Sakae. Bastaram algumas cuspidas dele em um tubo e da avó de Sakae em outro, cerca de US$ 100, algumas semanas de espera e voilá: confirmado. Os dois têm grau de parentesco. A próxima missão de Sakae é descobrir exatamente quem da família Rocha Coutinho era o pai de sua tataravó.
O paulista Rodrigo Alves Silva tem uma história parecida. Ele sempre teve curiosidade e interesse por história, especialmente a do próprio passado. Por ser negro, não havia dúvidas de sua ascendência africana, mas ao fazer um teste genético de ancestralidade descobriu ter 50% de composição genética africana, principalmente da Nigéria, e 33% europeia. É quase tão europeu quanto africano.
O resultado do teste trouxe ainda outra revelação: Silva tem alta compatibilidade genética com um homem que mora nos Estados Unidos. Um primo de quem nunca tinha ouvido falar e despertou nele a curiosidade de saber mais sobre a história da família de seu pai, com quem teve pouco contato. Ele é descendente da família Campos, cujo patriarca, Filipe de Campos Banderborg, foi um importante senhor de escravos no interior paulista — interior este onde viveu sua bisavó, uma branca de olhos azuis e cabelos crespos.
Encontrar o primo desconhecido fez com que ele pesquisasse mais a fundo esse lado da família e descobrisse aquilo de que desconfiava: sua tataravó viveu na condição de escrava e provavelmente foi violentada pelo patriarca da família Campos. Ao contar as descobertas ao primo, este não quis mais contato. Silva, no entanto, diz que compreende o lado dele. “O que para mim foi uma relação de descoberta, para outra pessoa pode ser a revelação de um passado obscuro, e o Brasil é um país que busca muito fugir de um passado de escravidão e abusos”, destaca. “Mas está na genética, não podemos negar.”
Embora o estudo de genealogia remonte à Idade Média, talvez nunca tenha experimentado uma reviravolta tão grande quanto nos últimos três anos, com a popularização dos testes genéticos de ancestralidade. Uma pesquisa divulgada pelo MIT Technology Review revelou que ao menos 26 milhões de pessoas já coletaram amostras de saliva ou de células da bochecha para ter parte do genoma analisado. Se o ritmo se mantiver, a expectativa é de que, em dois anos, mais de 100 milhões de pessoas no mundo tenham acesso a detalhes sobre sua ancestralidade.
(Por: Marília Marasciulo / Edição: Giuliana de Toledo )