Por Marcos Roberto Souza – Opinião
Considerações a respeito do vídeo “Uma mentira atrás da outra”, da jornalista Gabriela Prioli.
Ontem à noite, por conta de todo esse muito falar em “terceira via”, ocorreu-me revisar uma lição sobre o conceito de dialética em Hegel.
Sói associar-se à dialética hegeliana a dinâmica segundo a qual, opondo-se a uma TESE uma ANTÍTESE, obtém-se uma SÍNTESE.
Ora, semelhante dinâmica — pura e simplesmente — NADA tem que ver com a definição hegeliana de dialética: tal concepção remonta à escolástica medieval, em cujo Trivium se ensinava, ademais de dialética, gramática e retórica.
A dialética, em Hegel (definida como “o Espírito organizado da contradição”), é muito mais sofisticada. Dado o movimento de um CONCEITO para seu OBJETO, produz-se, nessa dinâmica, uma EXPERIÊNCIA. Em havendo, nessa experiência, uma CONTRADIÇÃO do objeto para com seu conceito, tal contradição retorna para o conceito — de sorte que, a cada contradição vivida pela experiência, o conceito ENRIQUECE-SE, POTENCIALIZA-SE, e a essa dinâmica (conceito –> objeto –> experiência –> contradição –> conceito) poder-se-lhe-ia atribuir a forma de uma espiral ascendente, indicativa de um aprimoramento do conceito a cada contradição experiencial (e não adequação semântica) com relação a seu respectivo objeto.
Ora, a expectativa (hoje, verdadeira ansiedade) em “encontrar” a tal terceira via para as eleições do ano que vem, assemelha-se — quanto à concepção de dialética — menos à sofisticação hegeliana e mais à superficialidade escolástica. É como se, contrapondo-se um posicionamento político a outro, que lhe seja contrário — brotasse uma perspectiva que atendesse aos interesses e agradasse às convicções de um e outro lado.
É raso pensar que, num pleito eleitoral, as diferentes agremiações partidárias se opõem ou se aliam à força de ideias: não são maneiras de pensar, mas modos de viver, que disputam a vitória no sufrágio.
Uma ingenuidade em política, inspirada pelo otimismo de Habermas acerca de uma “gramática” comum aos que disputam entre si a contínua significação da vida (gramática essa firmada em suas pretensões de validade: inteligibilidade, verdade, retidão e veracidade), anda inspirando anelos bem intencionados (mas nada exequíveis) de “pôr para conversar direita e esquerda”, de “promover o diálogo entre socialismo e liberalismo”.
É como se, entre os partidários de uma política econômica firmada no superávit primário, no câmbio flutuante e na meta de inflação, e os defensores de uma economia política fundada na distribuição de renda, na erradicação da fome e em políticas públicas de inclusão voltadas a setores da sociedade historicamente minorizados — tudo fosse uma questão de entablar uma boa conversa: talvez, se cada um dos lados em disputa falasse devagar, escolhesse melhor as palavras e (principalmente) SE DEIXASSE GUIAR, NÃO PELA EMOÇÃO, PORÉM SIM PELA RAZÃO — pronto: acharíamos a síntese, encontraríamos um modo de arranjar os interesses e anseios de modo que o resultado ficaria “bom para as ambas as partes”.
Infelizmente, as coisas não são assim tão simples: não se trata só de “ouvir o outro”, de “estabelecer um diálogo”. Analogamente ao conceito hegeliano de dialética, o confronto político entre grupos que se opõem ideologicamente perfaz uma dinâmica menos edulcorada: dado um amplo espectro que representa, pela experiência, a diferença entre o que se pensa (o conceito) e o que se busca apreender (o objeto) — cada perspectiva ideológica, ademais de haver-se com as contradições inerentes a seu próprio esforço por “acertar” (melhorando seu arcabouço intelectual pelas contínuas contradições entre conceito e objeto), ainda tem de disputar sua influência sobre os rumos da sociedade com suas adversárias — que buscam apreender os mesmos objetos, mas com conceitos diferentes.
A coisa toda, portanto, é duplamente conflitiva: ademais de uma tensão intrínseca (pois não se estabelece entre um conceito e seu objeto uma adequação, senão uma contradição) — instaura-se no processo uma tensão extrínseca (porque se estabelece, entre as várias correntes políticas — diversas ou até opostas –, a disputa por fazer incidir distintos conceitos sobre o mesmo objeto).
Nada mais natural do que, em pleitos mais renhidos, se instaurarem polarizações. É um fenômeno tão afeito à história política da humanidade, que se diria ser assaz ocioso enumerar casos. Tomemos o Brasil. Acaso o país não se polarizou durante a campanha pela abolição? Não houve polarização quando do acirramento dos conflitos que desembocaram na Revolução de 30? Os setores progressista e conservador não se polarizaram nas tensões sociais cujo desfecho foi o Golpe de 64?
Verdade que, com o advento do projeto fascista de Bolsonaro como uma radicalização do conservadorismo impopular do governo Temer — voltou-se a constatar o fenômeno social da polarização; todavia esse mal-estar, essa quase obsessão por uma “terceira via”, em termos eleitorais — só começou quando da libertação de Lula, seguida pelo restabelecimento de seus direitos políticos. A partir daí, os meios de grande circulação ou audiência passaram a fazer circular a ideia de que Lula e Bolsonaro representariam as duas faces de uma mesma moeda (deram-se inclusive o trabalho de cunhar um termo: “bolsolulismo”) — e passaram a alimentar a ansiedade de que tanto um quanto o outro representariam, cada um a sua maneira, o radicalismo ideológico.
Sugiro à classe média gentil e ilustrada que, em vez de fazer circular esses afetos (no sentido elaborado pela filosofia de Spinoza: aquilo que nos AFETA), cuja ansiedade é alimentada, seja pelo medo (de limitar-se ao “bolsolulismo”), seja pela esperança (de encontrar a “terceira via”) — procure dar-se conta do que significa o governo Bolsonaro.
Não se trata apenas de uma administração corrupta (como a de Collor) nem somente de um grupo político impopular (como o de Temer): estamos falando de um projeto fascista de poder — e, como tal, disposto a toda e qualquer quebra do protocolo governamental, a todo e qualquer desrespeito à funcionalidade institucional, a toda e qualquer disrupção contra o Estado democrático de direito. Bolsonaro não está à frente de um governo: ele encabeça um “movimento permanente”, cuja meta é manter um “desgoverno” contra o Estado.
Por isso, em não sendo possível impedir a consolidação de seu projeto de poder — a instauração de uma ditadura: um regime político fundado no arbítrio do “Mito” — por meio do impeachment, que se vote no candidato com maior chance de derrotar o fascismo bolsonarista nas urnas. Caso a classe média gentil e ilustrada queira dar-se o desfrute de um voto que atenda a aspirações políticas mais sutis — que vá bater cabeça na escolha de candidatos para as eleições proporcionais: que escolha, com deleite ideológico e satisfação partidária, os membros da Legislatura federal que se assentará no Congresso a partir de 2023.
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