A suspensão das operações policiais é fundamental para evitar a continuidade de uma política de enfrentamento armado genocida.
O Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma audiência pública sobre a ação que estabelece a suspensão das operações policiais nas favelas do estado do Rio de Janeiro durante a pandemia, mais conhecida como a ADPF das Favelas.
A audiência pública, que foi realizada de forma virtual, reuniu o conjunto de organizações da sociedade civil reconhecidas como amici curiae (amigos do Tribunal) no processo, o Ministério Público e outras entidades governamentais.
Durante dois dias, as organizações da sociedade civil deram testemunhos nos quais houve consenso de que a atual política de segurança do estado do Rio de Janeiro é um modelo que favorece o confronto e coloca as comunidades e a própria polícia em risco numa perspectiva de guerra que nada produz em termos de segurança pública efetiva e gera um índice exacerbado de violência policial que impacta profundamente a vida das famílias e comunidades negras nas favelas e periferias.
Em sua visita ao local realizada em 2018, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) observou “o uso continuado e indiscriminado da prática de perfilamento racial, que acaba gerando um elevado número de vítimas afrodescendentes, residentes em bairros marginais, periféricos e áreas de maior vulnerabilidade econômica. A essas políticas, adiciona-se um processo de militarização da segurança pública, que, por sua vez, acaba por consolidar uma lógica da guerra nos centros urbanos e rurais. Todo o anterior faz com que as estatísticas coloquem a polícia brasileira como uma das mais letais no mundo, bem como a que mais tem profissionais assassinados.”
Garantir o cumprimento da suspensão das operações policiais é fundamental para evitar a continuidade de uma política de enfrentamento armado genocida que só resulta na morte de negros
Dados coletados pela organização Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR) mostram que houve uma ampla violação da ordem judicial, uma vez que as operações policiais não foram interrompidas na Baixada Fluminense mesmo durante a pandemia. Em dez meses de implementação da liminar que impede as operações policiais no Rio de Janeiro, a IDMJR identificou um total de 330 operações policiais realizadas somente na Baixada Fluminense, resultando na morte de 56 pessoas e 122 pessoas feridas ou baleadas.
Portanto, garantir o cumprimento da suspensão das operações policiais é fundamental para evitar a continuidade de uma política de enfrentamento armado genocida que só resulta na morte de negros. O Ministério Público, órgão encarregado de realizar o controle externo da atividade policial, anunciou recentemente uma mudança em sua estrutura para cumprir este objetivo: caberá agora às entidades da sociedade civil participar de ações de acompanhamento para monitorar resultados concretos na redução da letalidade e na proteção da vida das pessoas que vivem nas favelas. Esta mudança, assim como a audiência pública na qual, pela primeira vez, as vítimas de violência policial puderam se dirigir diretamente à Suprema Corte, é resultado da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635.
Conhecida como ADPF das Favelas, a petição de violação de preceito fundamental foi elaborada coletivamente pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, o PSB (Partido Socialista Brasileiro), Educafro, Justiça Global, Redes da Maré, Conectas Direitos Humanos, Movimento Negro Unificado, Iser, IDMJR, Coletivo Papo Reto, Coletivo Fala Akari, Rede de Comunidades e Movimento contra a Violência, Mães de Manguinhos, entidades e movimentos sociais reconhecidos como amici curiae no processo.
Desde junho, uma medida cautelar do ministro do STF Edson Fachin, endossada pelo Tribunal Pleno, determinou a suspensão das operações policiais no Rio de Janeiro durante a emergência sanitária da Covid-19. A decisão histórica foi concedida após a solicitação de uma liminar pelas organizações participantes da ADPF 635.
Esta audiência é de importância histórica para promover o debate público sobre racismo estrutural na política de segurança pública no Rio de Janeiro
O debate foi aberto a fim de discutir estratégias para reduzir a letalidade policial no estado do Rio de Janeiro, uma das obrigações do Estado brasileiro impostas pela decisão do Tribunal da CIDH de 2017 no caso Favela Nova Brasília contra o Brasil. O caso, litigado pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), resultou em um julgamento no qual o Estado brasileiro foi condenado pela violação de vários direitos humanos fundamentais no contexto de uma operação policial. Entre os pontos adotados na sentença estava a obrigação nº 17, que exige que o Estado adote as medidas necessárias para que o Estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas para a redução da letalidade e da violência policial.
A relevância desta condenação internacional para o julgamento no presente caso já foi reconhecida pelo ministro Gilmar Mendes em seu voto no julgamento da medida cautelar parcial quando destacou que “que o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Favela Nova Brasília, não apenas pela violação às regras mínimas de uso da força, mas também por não prever protocolos para o uso da força, seja para atestar a necessidade do emprego, seja para fiscalizá-lo”. Da mesma forma, o ministro relator Edson Fachin, por sua vez, referiu-se ao atraso no cumprimento da ordem emitida pela Corte Interamericana como base plausível para a tese de que o Estado do Rio de Janeiro não promove políticas públicas para reduzir a letalidade policial.
Beatriz Galli, diretora do programa do Brasil CEJIL, afirmou de forma consistente durante a audiência: “Esta audiência é de importância histórica para promover o debate público sobre racismo estrutural na política de segurança pública no Rio de Janeiro, onde a letalidade policial contra a população negra que vive nas favelas é a maior do mundo. Entretanto, como resultado concreto, exigimos a implementação do julgamento da Corte Interamericana no caso Favela Nova Brasília e a adoção urgente de um plano para reduzir a letalidade policial que estabeleça metas e políticas claras para monitorar as operações nas favelas e periferias, o uso desproporcional da força e o uso do perfil racial. Somente assim será possível superar o atual cenário de enfrentamento violento, racismo e morte que o estado do Rio de Janeiro vive”.
Silvie Ojeda / Open Democracy.