Trinta anos depois, mais de 70 trabalhadores ainda estão desaparecidos após ação da Polícia Militar paraense
O crime da Vale em Brumadinho completa um ano, mas não é de hoje que a mineração provoca morte de trabalhadores. Outro episódio também protagonizado pela mineradora, deixou marcas na memória da população de Marabá (PA).
Conhecido como “o massacre da ponte de Marabá”, mais de 300 pessoas que participavam de uma manifestação por direitos trabalhistas no garimpo de Serra Pelada, foram encurraladas por policiais militares paraenses a cerca de 70 metros de altura do Rio Tocantins. Mais de 30 anos depois, o número de mortos ainda não está verdadeiramente desvendado. O governo, à época, sinalizava com dois mortos, conta que subiu para nove nos anos que se seguiram, mas registros apontam de 50 a 79 desaparecidos em decorrência dos conflitos.
“Para nós, garimpeiros, temos mais de 70 desaparecidos e para o Estado, como sempre, onde não há corpo não há vítimas, eles desapareceram com todos os corpos e esses dados não aparecem de forma oficial”, aponta o garimpeiro Etevaldo Arantes, que aos 22 anos, participava da manifestação de trabalhadores e trabalhadoras em Serra Pelada (PA) e foi um dos sobreviventes do episódio.
“Ficamos completamente cercados. Foi um troço muito absurdo, uma comunidade cercada para todos os lados sem poder sair para lado nenhum, porque todos os lados haviam policiais”, relembra Arantes, hoje com 55 anos e integrante de uma das cooperativas de garimpeiros que resiste na região.
Ele recorda que além dos garimpeiros, havia mulheres, jovens e crianças encurralados na ponte de Marabá naquele 29 de dezembro de 1987. Sob o comando do então governador do Pará, Hélio Gueiros, a Polícia Militar abriu fogo dos dois lados e encurralou os trabalhadores, que ocupavam a ponte rodoferroviária de Marabá, por onde transita o minério de ferro da Vale.
“Havia poucas opções, era se jogar em cima de uma ponte, no pedregal embaixo, que era verão e tinha pouca água. Passar entre o corredor polonês, que estava na mureta. Na mureta da ponte estava a fila de policiais e ali eles davam pancadas e atiravam as pessoas. Enfim, foi algo muito louco e difícil naquele momento”, conta Arantes.
O objetivo da manifestação era garantir a manutenção da extração manual do ouro de Serra Pelada e ter melhores condições de trabalho, como explica o garimpeiro, que desde os 16 anos mora e trabalha na região.
“Serra Pelada sempre foi assim, a cada ano desde o seu surgimento, a gente tinha que fazer luta para continuar trabalhando mais um ano. Em 1987 não foi diferente e nós nos organizamos para reivindicar o direito do estado e do governo criar um rebaixamento, criar condições para que a gente pudesse continuar trabalhando. Quando menos esperamos o governo estadual baixou com a força policial e matou aquilo tudo, causou uma chacina das mais inimagináveis”.
Registro
A denúncia dos garimpeiros está presente no livro Encurralados na Ponte: o massacre dos garimpeiros de Serra Pelada, lançado em 2019 pelo escritor Paulo Roberto Ferreira. “Existe denuncia de que muitos desses desaparecidos foram colocados no gavetão de ônibus, de uma empresa chama Transbrasiliana, que prestava serviço para Polícia Militar e governo do Estado. Entrevistei famílias que ainda hoje procuram notícias dos seus familiares que estão sumidos desde esta época”, confirma o jornalista, que cobriu o acontecimento na época.
O crime nunca foi investigado e ficou esquecido na história do país, relata Ferreira. “Eu fui até o Ministério Público e não encontrei nem um inquérito, não existe nada. Se foi aberta alguma coisa não existe nem no arquivo morto. Fui no Ministério Público Militar, Polícia Militar também não encontrei. Quer dizer não houve nada, porque não houve cobrança”, aponta.
Além do relato de Etevaldo Arantes, o livro-reportagem traz novos e antigos depoimentos de pessoas que estiveram sob a mira da repressão policial, além narrar a corrida do ouro e o controle militar dentro do garimpo de Serra Pelada, que chegou a atrair mais de 80 mil homens ao sudeste do Pará, a partir de 1980.
A obra conta toda a articulação da ditadura militar (1964-1985) para que a população ocupasse a região e evitasse a movimentação de guerrilhas e ocupação de terras. A relação com os garimpeiros mudou, quando a moradia e trabalho nas minas se tornou permanente.
Para Etevaldo Arantes, desde então, o Estado tenta eliminar a presença da comunidade garimpeira. “Serra Pelada foi algo programado para não dar certo, então o Estado por mais que aceitasse a gente trabalhar naquela época, a cada ano eles criavam dificuldades para parar de funcionar. Então naquele momento que a gente ficou com bastante pessoas lá, o Estado deu uma demonstração de força e continuaria impondo o que eles quisessem. E a partir daquele período realmente o garimpo parou de funcionar, nunca mais funcionou com qualidade. Embora a gente continue aqui”, indica.
Está registrada no livro, também, esta sequência histórica de ataques do Estado e da empresa Vale contra as lideranças de garimpeiros, envolvendo, inclusive, as forças da segurança nacional brasileira.“O livro foi um pouco um resgate de todo esse processo, inclusive para mostrar que ainda hoje o processo de disputa é muito grande, aponta o escritor.
Paulo Roberto Ferreira vê com preocupação os impactos sociais e ambientais do conflito, que continua até hoje.“Hoje a Vale é uma das maiores mineradoras do mundo, tem o maior trem do mundo lá, são 6,3 Km que ocupam um comboio de trem transportando minério. A previsão que aquilo ali era para durar uns 200 anos de extração, a previsão hoje é que não passa de 2060. Tem poucos anos aí tal a intensidade que se faz na extração desse minério.”
Aliança entre Estado e mineradoras
O Massacre da Ponte de Marabá inaugurou a prática de encurralar as vítimas e promover a execução sumária. O mesmo ritual se repetiu no Massacre da Curva do S, em Eldorado dos Carajás, em 1996, e com o Massacre de Pau D’Arco, em 24 de maio de 2017. Em todos eles com a mesma característica de aliança entre o Estado (Polícia Militar) e o capital, seja ele mineral ou latifundiário.
Arantes explica como se dá esta relação, “Quando a gente fala de estado em relação aos garimpeiros, nessa região, principalmente, a gente está falando da Vale. A Vale era o Estado, o Estado era a Vale naquele período. Então tudo o que Estado fazia para tirar o garimpeiro, para enfrentar o garimpeiro, exatamente buscando fazer esse processo para entregar a mineração para a Vale.”
A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), hoje apenas Vale, controlava toda a província mineral de Carajás.“Eu costumo dizer o seguinte, é o único grupo de trabalhadores, que eu conheço, no mundo em que o próprio Estado trabalhou de forma efetiva para quebrar e destruir economicamente e fazer desistir de um projeto”, desabafa o garimpeiro.
Apesar de ter produzido oficialmente mais de 40 toneladas de ouro e movido o sonho de milhões de brasileiros em direção às entranhas da montanha sedutora, a riqueza extraída do garimpo não beneficiou diretamente os trabalhadores. Mais de 40 anos depois da ocupação da região de Serra Pelada, no município de Curionópolis, a população permanece submetida à situação de pobreza e precariedade nas relações trabalhistas.
Arantes aponta que as reivindicações dos garimpeiros por direitos permanece a mesma, apesar das ações promovidas pela Vale para enfraquecer a organização dos trabalhadores como dificultar a emissão de licenças minerais e ambientais e contaminar a região com produtos químicos.
“A gente aqui continua em estado de desobediência civil para poder alcançar ou minimizar as vontades da Vale. Alcançar nossos objetivos e minimizar um pouco os objetivos do Estado em relação à gente. Mas não tem sido fácil. As divergências são várias para criar um estado de calamidade e de desistência. A arte da guerra diz que quando você não pode eliminar o adversário, você causa intriga entre eles, eles vão brigando e se enfraquecendo até que facilite o poder. Então isso é o que basicamente tem acontecido”, denúncia Etevaldo Arantes.