Por Ivann Carlos Lago – Opinião
O governo Bolsonaro não é um governo orientado pelo conservadorismo. É um governo orientado pelo ressentimento e pelo ódio.
O governo Bolsonaro não é um governo orientado pelo conservadorismo. É um governo orientado pelo ressentimento e pelo ódio. E esse ódio não é simplesmente contra os “comunistas” ou contra a esquerda. Esse ódio é contra o livre pensamento. É contra tudo e todos que veem o mundo de modo diferente.
O Brasil jamais teve um governo liberal, e continua sem tê-lo. Com exceção do ministro da economia e alguns membros de sua equipe, adeptos de uma versão tão radical quanto tosca do neoliberalismo, o governo de plantão sequer compreende os preceitos do liberalismo enquanto teoria política. Tampouco sabe o que é comunismo, marxismo ou teoria do intelectual orgânico (aquela de Gramsci que eles tanto criticam, mas nunca leram).
Quando esse governo, através do seu recém-chegado ministro da educação, anuncia o estrangulamento financeiro aos cursos de graduação em ciências humanas e filosofia, não apenas se baseia em informações falsas e distorcidas (por exemplo, a de que esses cursos seriam financeiramente privilegiados nas universidades desde os governos do PT porque formariam comunistas), mas também assume, equivocadamente, que esses cursos formam críticos ao seu governo porque disseminam o marxismo.
Ora, não há qualquer necessidade de usar Marx para criticar o atual governo. Nem Gramsci, nem os teóricos da escola de Frankfurt (se alguém não souber o que é, procure no Google), nem qualquer pensador marxista mais contemporâneo. O desgoverno de plantão pode ser desmontado analiticamente apenas com autores centrais ao próprio pensamento liberal.
Tomemos, por exemplo, John Locke, pai do liberalismo, em meados do século XVIII. Foi ele quem defendeu que a liberdade individual, o direito de cada cidadão viver sua vida do modo que julgar adequado, com absoluta liberdade de pensamento, de ação, de comportamento, são inalienáveis e sagrados. Ao Estado não apenas é proibida qualquer tentativa de impor aos indivíduos valores morais, princípios religiosos, estilos de vida, padrões de comportamento. Lhe é imposto ainda o dever de assegurar que também entre os indivíduos nenhum imponha a outro qualquer restrição à essa liberdade.
E Locke vai além. A legitimidade de qualquer governo está intimamente associada à sua capacidade de assegurar tais liberdades, que não são invenções ou dádivas do Estado, mas prerrogativas individuais que lhe são anteriores, e que àquele cabe garantir a todos os cidadãos. Locke defende inclusive o tiranicídio, que é o direito assegurado ao povo de atacar e destruir qualquer governo quando ele se tornar uma ameaça às liberdades individuais.
Ora, a obsessão por controlar a vida privada das pessoas, seu comportamento sexual, seu estilo de vida, não é, de modo algum, decorrente da adesão ao liberalismo. Ao contrário, é sua negação. Essa obsessão não é consequência de adesão à teoria alguma; é vingança institucionalizada contra modos de viver e pensar que assustam por serem diferentes. Freud e não Locke é quem explica esse governo e suas decisões.
São essas ideias liberais que estão na base da Revolução Francesa e de todas as mudanças que ela provocou no mundo ocidental. Dentre elas a consolidação dos Direitos Humanos que, ademais de serem constantemente cooptados pela esquerda, por exemplo, no Brasil, como sendo invenção sua, são preceitos iminentemente liberais.
Mas, seguimos nosso raciocínio. Vamos até Tocqueville, já no século XIX. Outro grande marco do pensamento liberal, estudou a cultura e as instituições políticas nos Estados Unidos por volta de 1830. Ficou maravilhado com a capacidade de organização das comunidades estadunidenses, especialmente as mais isoladas. Encantou-se com o efeito político do associativismo e do comunitarismo, com o princípio da igualdade de condições – visto que é ela que assegura, segundo os preceitos liberais, a possibilidade de destaque individual.
Quando retornou à França, Tocqueville redigiu conselhos (“A Democracia na América”) aos franceses, mostrando-lhes o caminho para tirar da democracia o máximo que ela poderia dar. Dentre os mais importantes estavam a preocupação com a igualdade de condições, o incentivo ao associativismo, a defesa da liberdade de expressão, o fomento ao pensamento crítico e à divergência de ideias, pois é dela que nascem novas teorias, novas formas de conceber o mundo e de transformá-lo.
Cheguemos à teoria política liberal dos séculos XX e XXI. Para não alongar esse texto, fiquemos com John Rawls, um dos grandes arquitetos do liberalismo de meados do século passado. Ao aproximar o liberalismo da teoria jurídica, construiu um dos maiores arcabouços teóricos em torno da justiça, de sua definição, de sua promoção e do papel do Estado em assegurá-la.
E, mais uma vez, lá estão os princípios da liberdade de expressão, de pensamento, de comportamento. Lá está, novamente, a tese de que a liberdade só pode ser exercida em sua plenitude se ela for uma prerrogativa de todos os cidadãos, o que implica assumir a igualdade de condições como primeiro e mais importante dos princípios de qualquer sociedade.
Por fim, lembremos de Amartya Sen, Indiano, pensador contemporâneo adepto do liberalismo e ferrenho defensor das políticas públicas sociais. Seu argumento central é o da defesa do “Desenvolvimento como liberdade”. Não há, segundo ele, como se falar em desenvolvimento enquanto comunidades e mesmo sociedades inteiras são analfabetas, passam fome, não tem acesso a tratamentos básicos de saúde ou à justiça. Não há como se falar em desenvolvimento enquanto crianças morrem de desnutrição, não têm acesso à escola, não podem desenvolver suas capacidades com plenitude.
A liberdade é um fim, um ideal político, que só pode ser alcançado quando os cidadãos são tratados como cidadãos, quando podem viver em condições de igualdade, e quando têm assegurados seus direitos e condições para desenvolver todo o seu potencial. E isso, claro, se faz com políticas públicas e com governos atuantes.
Pois é. Tudo isso pode ser tomado como argumento para desconstruir os discursos autoritários, preconceituosos, raivosos e incompetentes do atual governo. E, contudo, sequer passamos perto de autores marxistas. Ao contrário, ficamos apenas no campo da teoria liberal, aquela mesma que eles dizem defender, mas que, ou nunca leram, ou a distorcem estupidamente ao ponto de fazê-la caber em suas minúsculas caixinhas ideológicas.
Quando o atual governo ataca as universidades, os professores, as ciências humanas, a filosofia, ele não está atacando o marxismo. Ele está usando a condição de governo e a estrutura do Estado para atacar o livre pensamento em sua acepção mais básica.
Não é preciso ser marxista para ver o ridículo. Basta pensar com autonomia, com rigor e com o mínimo de honestidade intelectual. E o pensamento autônomo e o rigor de método são princípios elementares do fazer científico, o que inclui as ciências humanas, é claro, mas não é exclusivo delas.
O recém-chegado ministro da educação não acabará com as críticas ao governo perseguindo e atacando os cursos de ciências humanas. O que ele conseguirá é apenas intensificar ainda mais as críticas ao governo do qual faz parte. Porque frequentando ou não cursos de humanas, a maioria dos brasileiros ainda é capaz de pensar. E basta fazê-lo com o mínimo de rigor e profundidade para concluir que o país não é governado por “liberais conservadores”, mas por um bando de trogloditas alucinados que não tem a mínima noção do que fazer com o país que comandam.
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