Este artigo representa o resumo de um livro que estamos desenvolvendo, que tem como objetivo o estudo das organizações humanas, com foco nos sistemas tribais, a forma organizativa mais antiga da humanidade.
O livro apresentará uma primeira parte de retrospectiva das organizações humanas desde o aparecimento da espécie humana à atualidade e, na segunda parte, os fundamentos do tribalismo. Ao final fornece as indicações de como fundar uma sociedade tribal em qualquer parte do mundo, utilizando-se de outras ferramentas metodológicas, como o Dragon Dreamming e a Sociocracia.
As Raízes da Humanidade.
Segundo a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin, que até hoje não encontrou contestação ou proposição de igual envergadura na ciência, os humanos teriam evoluído a partir dos primatas, que habitavam as florestas da Àfrica. Esses primatas teriam se dividido em dois ramos: os pongidae e os hominidae. Os pongidae teriam dado origem a várias espécies de macacos, gorilas e chipanzés e o hominidae ao gênero homo.
O ramo hominídeo decidiu descer das árvores e disputar comida nas planícies há cerca de 4 milhões de anos A.P. (Antes do Presente). Para isso, teve que desenvolver, além de algumas ferramentas e habilidades, organizações sociais cada vez mais sofisticadas, que dessem conta, não somente da obtenção de alimentos, mas também da administração de grupos que se tornavam a cada dia mais numerosos e heterogêneos. Mesmo quando alguns pesquisadores definem os grupamentos humanos pré-históricos como hordas de caçadores e coletores, é correto afirmar que eles possuíam organizações próprias, que possibilitavam a prática das atividades de caça e coleta de frutos, a construção de abrigos e a defesa de ataques de outros grupos. Esses grupamentos humanos viriam, no futuro, a ser denominados de tribos – do latim tribus.
Com o advento da agricultura, que teria ocorrido em várias partes do globo, entre 11.000 e 10.000 anos A.P., muitos desses grupamentos humanos tornaram-se gradativamente sedentários, continuando, no entanto, a se organizarem em tribos.
As Organizações Sociais Centralizadoras de Poder.
As primeiras formas de organizações humanas concentradoras de poder teriam aparecido na Suméria, há cerca de 5.000 aos A.P., na forma de feudos. Talvez não por acaso, é naquela região que se registram também as primeiras formas de dinheiro, de comércio e da escrita, usada para registrar as transações comerciais. Aos primeiros feudos se sucederam outras formas organizativas centralizadoras de poder, como reinados, impérios e estados. O primeiro império teria ocorrido na Arcádia, há cerca de 4,5 mil anos.
O novo sistema que surgia propunha a unificação das tribos, mesmo que a coação e a força precisassem ser usadas. E, a cada reinado que se formava ou rei que assumia a coroa, tinha-se como fator positivo para os súditos, a conquista de novas terras e a dominação dos povos “bárbaros”. Os chamados bárbaros eram exatamente os povos tribais. Essa mentalidade é observada ainda na atualidade, nas ações de expansão de estados ditos democráticos. A cada governante que assume, em países onde ainda se verifica a presença de povos tribais (como os países da América do Sul, Brasil incluído), sempre é editado algum plano de expansão colonizadora, que atinge esses povos, ainda considerados “primitivos”.
O Sistema Capitalista
O capitalismo só começaria a ser reconhecido como um sistema a partir do século XIV, com o advento das grandes navegações, que ampliaram o comercio intercontinental, induzindo os regimes feudais da Europa a se fundirem em estados, governados por monarcas. Ancorado em estados absolutistas; reforçado pelas religiões monoteístas, como o Catolicismo e o Islamismo, que lhe deram justificativas “divinas” para a dominação de outros povos; impulsionado pelo avanço da ciência, da indústria e das tecnologias de comunicação, o capitalismo tornou-se uma força hegemônica em todo o mundo. É uma força tão poderosa, que os próprios humanos não sabem como desativá-la ou mesmo arrefecê-la.
Desde que parte da humanidade percebeu o poder de dominação do sistema capitalista, grandes teorias e revoluções foram tentadas para confrontá-lo, no intuito de retirar o poder dos mais ricos e transferindo-o para os operários. Isso ocorreu através de pesadas “ditaduras do proletariado”, que se tornaram, na prática, ineficientes e corruptos estados-patrão. Estamos falando do socialismo e comunismo, experiências organizativas surgidas no século XIX em oposição ao capitalismo, que acabaram fracassando. Ao fracassarem, reforçaram ainda mais a ideia da inevitabilidade do capitalismo.
As Mazelas do Sistema Capitalista.
Os efeitos contemporâneos do sistema capitalista todos sentimos no momento: o supérfluo alcançando mais valia do que os produtos básicos, consumismo desenfreado, acumulação de bens que deveriam ser de uso coletivo, desigualdades sociais profundas; doenças degenerativas provocadas por produtos industrializados; destruição inexorável da natureza, desequilíbrios climáticos; pandemias, guerras; escassez de água e alimentos, entre inúmeras outras mazelas.
O capitalismo acirrou a competição entre as pessoas, comunidades e países, levando-os aos conflitos e às guerras, aproveitando-se deles para crescer e dominar. Desenvolveu nas pessoas o conceito cultural do meu, em substituição ao nosso, além da mentalidade que a natureza existe para ser dominada e colocada a serviço do homem. Induziu as pessoas a habitarem os ambientes urbanos, em locais fechados e ao máximo individualismo.
O isolamento dos elementos da natureza, da qual todos fazemos parte, e do convívio estreito e constante com outras pessoas, acrescido de vários outros fatores, também gerados pelo capitalismo, tem levado milhões de pessoas a desenvolverem problemas mentais, como depressão, bipolaridades, deficiências de produção de hormônios, entre outros, sem contar as doenças degenerativas, e as provocadas pela ingestão de alimentos contaminados.
Por seu turno, as religiões hegemônicas, que há milênios se tornaram as grandes aliadas do sistema, atemorizam a alma das pessoas, ameaçando-as com o fogo do inferno, caso não sigam seus dogmas e as mantenham com (muito) dinheiro.
Acossados pelo medo material por um lado e pelo psíquico-espiritual pelo outro, os cidadãos se entregam aos seus salvadores, que lhes prometem a redenção, assim na terra como no céu. Entre resignados e esperançosos, a grande maioria das pessoas aguarda a grande catástrofe e o juízo final.
Tudo converge para a falta de perspectivas de futuro, principalmente dos jovens. Eles travam uma profunda e angustiante batalha interior, entre a consciência que lhes diz que as coisas precisam mudar e a realidade, que não lhes mostra nenhuma porta de saída.
O Movimento Hippie
O movimento social que influenciou marcantemente a modernidade, no entanto, foi o movimento hippie, ocorrido entre as décadas de 196070, quando jovens cabeludos passaram a contestar o sistema e saíram pelo mundo, em busca de paz e convivência harmoniosa com as pessoas e o meio-ambiente. O Movimento Hippie, como foi concebido, começou em declínio em 1969, após o festival de Woodstok. Ele deixou suas sementes, no entanto, nas milhares de experiências atuais, existentes em todo o mundo, do que se passou a chamar, genericamente, de Comunidades Alternativas ou Intencionais. Desde a década 1970, pessoas e grupos continuam a tentar deixar para trás o mundo urbano e o consumismo desenfreado, para viverem em pequenas comunidades, que sejam sustentáveis, social e ambientalmente.
Essas comunidades se estabelecem agindo dentro dos princípios de igualdade, cooperação, convivência harmoniosa entre as pessoas e a natureza. A maioria delas, no entanto, fracassa e as pessoas se dispersam, não raro, envoltas em brigas judiciais. Isso acontece porque, apesar de se constituírem propondo ações e estilos de vida que contestam o sistema, acabam caindo em suas malhas, ao constituírem instituições formais, tipo associações, institutos e cooperativas, para gerir o processo comunitário. Cotas, terrenos, escrituras, projetos, heranças, disputas pelo poder, tudo segue a lógica e a liturgia capitalista. Acabam provocando os mesmos tipos de conflitos do macro sistema.
O Tribalismo
Podemos afirmar, com base nos processos históricos, que todos os nossos antepassados foram tribais, em alguma época da longa história da humanidade. As grandes utopias humanas, como a convivência harmoniosa com as pessoas e com a natureza, a distribuição justa dos alimentos e dos bens, a espiritualidade ligada às forças naturais e aos antepassados, as festas e rituais coletivos, estão presentes nos arquétipos de todos os seres humanos. É como se fosse uma coisa que já tivemos e nos foi tirada, mas continua viva no inconsciente.
O que é uma tribo?
Pode-se dizer que tribo é um consórcio de pessoas e famílias que decidem compartilhar o mesmo território, na busca da subsistência física e econômica, seguindo regras comuns. Uma tribo forma uma comunidade fechada, da qual outras pessoas só podem participar com a permissão de todos.
O que os povos tribais, geralmente, denominam de meu povo ou minha tribo, é a aldeia onde residem e não todas as aldeias que possam existir, da sua etnia. Assim, as aldeias, mesmo que pertençam a uma mesma etnia, formam comunidades fechadas, independentes e autônomas, jamais interferindo nos assuntos internos umas das outras, mesmo que estejam muito próximas entre si. Se determinada família de uma aldeia pretende habitar em outra, necessita pedir permissão às lideranças de onde pretende morar. Uma vez ali, deverá, então, ajustar-se às políticas internas e externas e às práticas ritualísticas daquela comunidade.
Obviamente, as comunidades tribais relacionam-se diplomaticamente entre si, trocando alianças políticas, festas e casamentos. Eventualmente, também entram em conflito.
A evolução social das tribos.
A expansão da espécie homo por todos os continentes da terra possibilitou a formação de tribos diferenciadas culturalmente entre si, desde a linguagem, as crenças e as organizações sociais. Elas estavam sempre se cindindo, afastando-se de seu núcleo inicial e miscigenando-se a outras tribos, criando novas culturas.
Evoluindo durante milhões de anos em seus relacionamentos grupais, desde a lei do mais forte que vigorava em seu início, transformaram-se em sociedades que repelem categoricamente o poder de pessoas sobre outras. As lideranças, distribuídas equitativamente entre os clãs, não podem e não devem mandar em ninguém ou acumular posses, sob pena de serem defenestradas ou abandonadas pelo restante do grupo. O bom líder é aquele que sabe ouvir e costurar o consenso, além de cuidar para que as tradições ritualísticas herdadas dos antepassados sejam mantidas.
A Espiritualidade
As crenças espiritualistas tribais indígenas, em sua grande maioria, são baseadas no culto aos antepassados e na relação com entidades protetoras da natureza. Tudo no mundo natural possui vida, energia e espíritos protetores. Os chamados Pajés possuem a faculdade de entrar em contato com os protetores da natureza e com os espíritos dos antepassados. O SOL é nosso pai e a TERRA a nossa mãe. Além deles existe o GRANDE ESPÍRITO, que a tudo permeia. Não existem, no entanto, messias salvadores nem sistemas hierarquizados, com dogmas rígidos e regras emanadas de supostos representantes humanos de divindades onipotentes.
O Tribalismo
Premissas de um Sistema Tribal
Como são anteriores a todos esses fenômenos humanos, uma organização tribal deve ter as seguintes premissas: Ausência de estado, de estatutos, de propriedade privada, de moeda e de escrita. Se observarmos atentamente, esses são os principais focos de conflitos no sistema dominante.
Princípios e Fundamentos
São vários os princípios e fundamentos que sustentam um sistema tribal. Entre eles, podemos destacar:
– Gerontocracia –
O termo gerontocracia designa o predomínio dos mais velhos nas decisões coletivas. Em um sistema tribal, os mais idosos tomam as decisões finais em assuntos importantes.
– Decisão por Consenso –
Isso parece muito difícil para as pessoas que habitam no meio capitalista, que induz ao individualismo e a exaltação do ego, mas em uma sociedade tribal, as pessoas estão sempre predispostas ao consenso e ao bem-estar do grupo. O exercício continuado leva o grupo a desenvolver a cultura do consenso, já que nada importante será decidido sem alcançá-lo. O bom líder é aquele que sabe ouvir e costurar o consenso. Em decisões de assuntos importantes ou que se tornem polêmicos, após ouvir a todos, o consenso é alcançado apenas entre os mais idosos. Suas decisões devem ser seguidas por todos.
– Relações de Reciprocidade –
Trata-se das relações de trocas de alimentos e trabalho, mantida pelas famílias do grupo. Elas são baseadas, geralmente, em relações de parentesco direto e de famílias afins, ou seja, de famílias que buscam, preferencialmente, os casamentos de seus membros umas com as outras. Os parentes e os afins devem repartir os alimentos entre si, enviando-os de umas residências para outras. Assim, em um grupo tribal, uma família sempre terá certo número de residências às quais ela deve enviar os alimentos obtidos. Em contrapartida, sempre haverá certo número de famílias que deverá repartir os alimentos com ela. Isso possibilita a circulação igualitária de alimentos. Se forem seguidas as relações de reciprocidade, torna-se praticamente impossível alguma pessoa ou família acumular alimentos ou passar necessidades alimentares. Pelo sistema de reciprocidades também são realizadas trocas e mutirões de trabalhos entre famílias.
– Obrigações Ritualísticas –
Em uma sociedade tribal sempre há um calendário ritualístico e festivo que deve ser seguido. Esse calendário, é composto por festas e rituais que, geralmente, comemoram os ciclos da vida e da natureza. Chamamos de “obrigações ritualísticas” o verdadeiro compromisso que cada um dos membros da tribo precisa assumir, para que eles nunca deixem de ser realizados. A participação de cada indivíduo nesses ritos está ligada de alguma forma à sua vida, através de nomes pessoais, pertencimento a clãs e linhagens e grupos de idade. Assim, cada indivíduo torna-se único e imprescindível, para que os rituais aconteçam.
– Lideranças –
O líder, em uma sociedade tribal, jamais decide nada importante sozinho, não pode mandar em ninguém e não possui nenhum privilégio adicional pelo cargo. Ele tem a prerrogativa de propor ideias e atividades como qualquer outra pessoa que esteja em nível decisório. Precisará, no entanto, buscar o consenso em suas proposições, para que possa executá-las. Igualmente, escutará as proposições e debates dos outros membros do conselho tribal e, havendo consenso sobre elas, encaminhará a execução.
– Produção familiar –
A principal célula de produção e distribuição de alimentos e bens de consumo é a família, geralmente, as denominadas famílias extensas (grandes famílias formadas por várias famílias nucleares).
As famílias podem se juntar em mutirões para realizar determinadas tarefas, como construção de casas, trabalhos na lavoura, etc., mas, as propriedades dessas residências e das lavouras são familiares e não coletivas. Podem ocorrer trabalhos coletivos de todo o grupo para a produção de alimentos para uma grande festa pré-programada, por exemplo, mas, mesmo nesses casos, a lavoura será de responsabilidade de uma das famílias do grupo, geralmente, a dona (responsável) da festa.
A distribuição da produção se dá pelas regras de reciprocidade e pela realização de festas, rituais e brincadeiras, quando as famílias trocam alimentos ou se alimentam umas nas casas das outras.
– Organização por clãs, metades e grupos –
Os povos tribais, na busca por melhor relacionamento entre as famílias, rendimento nas atividades de subsistência e ritualísticas, procuram, em sua grande maioria, organizar-se de forma que haja sempre metades, clãs e grupos de atividades em oposição a outros. Na verdade, essas oposições formam sistemas duais, ligados a fenômenos da natureza ou a especializações em determinados conhecimentos ancestrais, que complementam uns aos outros. Assim, determinados clãs ou metades são especializados no conhecimento do fogo, da chuva, da caça, das sementes, etc. Dessa forma, cada clã, linhagem, família ou indivíduo, torna-se imprescindível à manutenção da unidade grupal, pois os conhecimentos de cada um complementam os dos outros, na tomada de decisões cotidianas. De um modo geral, os casamentos são buscados em clãs opostos, o que assegura a aliança permanente entre eles.
– Processo Educacional Próprio –
A base mantenedora de qualquer sociedade, inclusive as tribais, é a formação de crianças e jovens. Nas sociedades tribais indígenas, o processo educacional é iniciado por volta dos 07 anos, quando a criança é inserida em um grupo de crianças mais ou menos da sua idade, do qual ele fará parte o restante da sua vida, formando assim as classes de idade. Um dos problemas que ocorrem na manutenção das comunidades alternativas ou intencionais é a falta de um processo educacional próprio. Ao mandarem os filhos para estudarem fora das comunidades, impede-se que eles desenvolvam a mesma liga ideológica dos pioneiros. Quando retornam, não conseguem conviver com os outros dentro dos modelos adotados.
Existem outras características gerais das sociedades tribais que enumeramos no livro, mas que não as mencionaremos aqui, pela exiguidade do espaço.
O importante aqui é entender que é possível criar uma sociedade de modelo tribal em qualquer parte, seguindo as indicações que serão dadas na obra.
Os leitores, no entanto, poderão perguntar: Como manter uma comunidade tribal, que não possui estatuto, escrita, moeda e propriedade privada, no meio capitalista?
A solução que oferecemos na obra, é constituir, em paralelo, entidades formais, que irão dialogar com o sistema capitalista, sem deixar que sejam afetadas as relações sociais mantidas no sistema tribal. Parece complicado, mas é exatamente o que estão fazendo as sociedades tribais indígenas no Brasil e em outros países. Trafegam pelos dois sistemas, sem deixar que ações do sistema capitalista interfiram no sistema tradicional.
Dragon Dreamming, Sociocracia e Arquitetura.
O livro trará, em seus anexos, indicações de como formar uma comunidade tribal utilizando-se o Dragon Dreamming e a Sociocracia, duas metodologias modernas e eficazes para a formatação e administração de trabalhos em grupo. Essas metodologias possuem em seus princípios, as mesmas bases do Tribalismo. Para isso, estamos recebendo as contribuições do Professor Paulo Cesar Araújo e de Henny Freitas. Contará também cm a contribuição do Indigenista-Arquiteto Renato Sanchez, que apresentará ideias, conceitos e projetos de implantação de bairros populares, condomínios urbanos e rurais e comunidades intencionais, baseados na arquitetura e urbanismo indígena.
Fernando Schiavini é Indigenista e Escritor