O que é o Nuit Debout, movimento de rua que pretende revolucionar a política na França

Foto: Reprodução

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O movimento de rua chamado Nuit Debout que reúne milhares de franceses em permanente estado de mobilização no centro de Paris desde o dia 31 de março proclama basicamente a refundação da política em novos termos.

Nos protestos de 1º de Maio deste ano, e nos dias que antecederam a data máxima do calendário sindical no mundo, muitos dos jovens mobilizados na Praça da República foram acusados de envolvimento com distúrbios, choques com a polícia e depredação de patrimônio público, levando as autoridades a restringirem o consumo de álcool e o direito de assembleia na capital francesa.

A decisão pretende controlar um movimento de acampados que não dá descanso ao governo, aos políticos e aos partidos. O Nuit Debut – que pode ser traduzido como “vigília noturna” – defende ideias de esquerda, mas rechaçou até agora toda tentativa de aproximação por parte das estruturas formais de poder.

“Nem representados, nem representantes, as pessoas de todos os status devem retomar a propriedade sobre a reflexão a respeito do futuro do mundo. A política não é um assunto de profissionais, é assunto de todos. O humano deveria estar no centro das preocupações de nossos dirigentes. Os interesses particulares passaram por cima do interesse geral”

Texto de abertura do site oficial do Nuit Debout

O grupo tem contado com a simpatia e a adesão de jovens frustrados com os rumos da política formal e cansados dos discursos viciados dos comícios partidários tradicionais.

Um exemplo das novas formas de mobilização produzidas nesse movimento foi o concerto do dia 20 de abril, na Praça da República, quando 350 músicos aderiram a um convite para participar de um enorme concerto de rua. O grupo, formado espontaneamente por músicos de experiência e bagagem diversas, executou a 9ª Sinfonia “Do Novo Mundo”, a mais conhecida do compositor romântico Antonín Dvorak (1841-1904).

Mais de 16 mil pessoas acompanharam a transmissão pela internet e ao vivo, na própria praça.

Comerciantes locais e moradores da região têm pressionado as autoridades para dispersar o movimento. Depois de mais de um mês de acampamento ininterrupto, muitos franceses protestam contra o protesto dos jovens, dizendo que eles fazem cair o movimento de clientes, sujam as ruas, destroem caixas eletrônicos e se envolvem em episódios de violência com a polícia.

A despeito do sucesso da mobilização em termos midiáticos e de aglutinação nas redes sociais e na própria praça, torna-se mais provável a cada dia que a polícia decrete o fim do acampamento.

“Talvez não seja indispensável estar na Praça da República todas as noites. Esse movimento poderia encontrar outras formas de contestação”, disse ao jornal francês “Le Monde” Michel Cadot, responsável pela polícia em Paris.

 O Nexo entrevistou a francesa Cecília Baeza sobre o Nuit Debout. Há um ano ela é professora de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo e fez doutorado no Instituto de Estudos Políticos (Science Po), em Paris.

Cecília diz que o grupo é formado majoritariamente por “jovens de uns 30 anos, brancos, de classe média e que moram nas cidades, não na periferia”. O fenômeno é, portanto, diferente das jornadas violentas registradas nos bairros mais pobres das grandes cidades francesas em 2005, quando grupos de adolescentes marginalizados social e economicamente queimaram carros e enfrentaram a polícia por dias seguidos.

A professora conta que “já houve várias tentativas (do Nuit Debout) para se aproximar da periferia, deslocando as reuniões para esses bairros. Porém, a ‘convergência das lutas’ entre essa classe média e a periferia é muito difícil”.

Todos nós lembramos dos movimentos violentos de periferia que sacudiram a França em 2005. Claramente, o Nuit Debout é outra coisa. Qual a diferença? Por que ele é mais ‘pacífico’? Ele é um movimento classe média?

CECILIA BAEZA Os movimentos violentos que sacudiram as periferias das grandes cidades em 2005 ressonavam como um grito de raiva e de desespero de uma juventude abandonada pelos políticos por décadas e fortemente estigmatizada pela mídia. Entre os habitantes da periferia, os jovens são os que mais sofrem com a falta de emprego, agravada ainda mais hoje com a crise, com uma taxa de desemprego de 45% para a faixa etária dos 15 a 29 anos, contra 23,1% nos outros bairros. Embora seja possível fazer uma leitura política da violência de 2005, os jovens envolvidos expressavam um sentimento de frustração sem articulá-la, nesse momento, com uma demanda política.

O Nuit Debout tem um perfil totalmente diferente. O movimento é composto principalmente de jovens de uns 30 anos, brancos, de classe média e que moram nas cidades, não na periferia. Muitos são profissionais com formação universitária ou ainda estudantes, o que não os protege necessariamente da precariedade, cada vez mais comum no mundo laboral francês, mesmo na universidade.

Desde o começo, Nuit Debout emerge com o desejo de repensar a ação política e de traçar as linhas de um novo projeto político de esquerda. O grau de politização dos participantes é muito alto, mesmo com a maioria rejeitando os partidos políticos. Há uma vontade de reinventar a democracia representativa, e por essa mesma razão, existe no movimento uma consciência muito forte de que a falta de representatividade das classes mais desfavorecidas – em particular dos jovens da periferia – constitui um problema. Já houve várias tentativas para se aproximar da periferia, deslocando as reuniões para esses bairros. Porém, a ‘convergência das lutas’ entre essa classe média e a periferia é muito difícil. Isso provavelmente explica porque que a tarefa de fazer propostas concretas revelou-se complexa e, até agora, relativamente infrutuosa.

Quem são os líderes? O movimento se proclama horizontal, mas há lideranças visíveis?

CECILIA BAEZA Sinceramente – e acho isso bastante excepcional – não há lideranças visíveis. A mídia tenta desesperadamente identificar o rosto que poderia encarnar o movimento. O filósofo e economista Frédéric Lordon é citado, por exemplo, como uma das figuras intelectuais e um dos iniciadores de Nuit Debout. Também é citado François Ruffin, o diretor do filme, “Merci Patron!”, que critica a lógica neoliberal do mercado laboral. Porém, nenhum dos dois aceita ser rotulado como ‘líder’ do movimento, e de fato, eles não desempenham um papel de ‘condução’ do Nuit Debout.

Quais as chances de ‘sucesso’? E o que seria sucesso para o grupo?

CECILIA BAEZA Essa é a questão: como avaliar o movimento? E o que seria sucesso para Nuit Debout? Como eles não conseguiram fazer emerger um consenso ao redor de um programa político ou reivindicações claras, é muito difícil esperar um produto direto causado pelo movimento. Existe uma multiplicidade de problemas particulares, como os refugiados, a precariedade laboral, as discriminações raciais e religiosas etc, que não podem ser revolvidos com uma medida só. Eu acho que veremos os frutos do Nuit Debout no longo prazo, como um dos esforços para tentar dar uma nova vida à democracia, que hoje se encontra em crise na França como em muitos outros países. A força dos líderes populistas conservadores, tais como a Frente Nacional na França ou Donald Trump nos Estados Unidos, é de ter captado o descontentamento com esse modelo. Mas pensar que isso seja a solução é terrivelmente assustador. Ninguém ainda achou a fórmula mágica que permitiria reinventar nossas democracias liberais, de modo que elas sejam mais inclusivas, mais representativas, mais justas, menos repressivas, e mais transparentes.

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