Eu havia acabado de voltar ao Brasil, depois da primeira estadia num campo de refugiados, vivendo com as refugiadas em um campo do Líbano, comendo o que elas comiam, tentando vivenciar a dor do exílio, tentando entender o que é ter sua casa, seus sonhos e uma parte de sua família completamente destruídos. Uma vivência que mudou para sempre a minha visão sobre as guerras (genocídios cometidos por razões econômicas, mas travestidos de “somos heróis e vamos levar a paz e a democracia para lá “).
Poucas horas depois de pisar em solo brasileiro, leio uma entrevista de Jair Bolsonaro, então um deputado federal planejando se candidatar à presidência, a um jornal goiano ” Caso venham a reduzir o efetivo das Forças Armadas é menos gente nas ruas para fazer frente aos marginais haitianos, senegaleses, bolivianos, e tudo que é escória do mundo que, agora está chegando ao Brasil, os sírios e palestinos também. A escória do mundo está chegando ao Brasil como se nós não tivéssemos problemas demais para resolver”, dizia Bolsonaro ao jornalista.
A entrevista me provocava náuseas.
O futuro presidente de uma das nações mais gigantescas do planeta, uma das mais ricas em diversidade cultural e em minérios e recursos naturais estava alimentando o ódio aos refugiados e desconhecia a história de seu próprio país, construído por mais de 11 milhões de descendentes de árabes e também por 20 milhões de descendentes de africanos escravizados a quem devemos muito. Desconhecia que a imigração árabe ao Brasil nos deixou um legado que nos emociona e que inclui médicos como Adib Jatene, um dos pioneiros da cirurgia cardíaca no Brasil, escritores como Milton Hatoum e Raduan Nassar, historiadores como Murilo Mehy, tradutores fantásticos, acadêmicos como Arlene Clemesha, hospitais de referência internacional como o Sírio-libanês e uma infinidade de referências humanas.
Mas nesse artigo quero mencionar sobretudo o legado palestino para o Brasil. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados havia, em 2019, 79 milhões de deslocados forçados no mundo, dos quais 45,7 milhões eram deslocados internos, 20,4 milhões refugiados sob mandato do Acnur e 5,6 milhões sob mandato da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina, a Unrwa.
Ou seja, os palestinos formam hoje o maior grupo de refugiados do mundo. Conversando com Ualid Rabah, presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil, em 2019, durante o Congresso Nacional Palestino, em Porto Alegre, onde, com imensa honra, proferi uma palestra sobre o que vivi num campo de refugiados, ouvi dele algo que ficou tatuado em minha memória para sempre: “O palestino que se senta a uma mesa com pessoas de diferentes lugares do mundo é o único que tem de provar que tem o direito de existir, e quando está em sua terra ancestral, tem de lembrar e provar que está há 10 mil anos naquele lugar. Não basta dizer apenas que está ali, naquela casa, desde a geração de seu avô ou bisavô. Não basta chegar como qualquer um de nós aqui com título em cartório que prova que você tem direito àquela casa. Somos os únicos no mundo a ter que voltar à História Antiga, à história de Jericó, cidade mais antiga do mundo, para provar que temos o direito de existir…”
Os refugiados palestinos no mundo chegam hoje a quase seis milhões de pessoas e são a mais desumana e mais visível consequência da limpeza étnica na Palestina, iniciada com o Massacre de Deir Yassin, em 9 de abril de 1948 quando 120 milicianos judeus dos grupos terroristas Irgun e Haganá atacaram o vilarejo árabe habitado então por cerca de 700 palestinos, tanto muçulmanos quanto cristãos, e mataram, segundo a própria Cruz Vermelha Internacional, 254 pessoas, entre mulheres, homens, crianças e idosos.
Desde então os palestinos se tornaram o maior agrupamento humano de refugiados e vítimas de uma das mais longas limpezas étnicas da história da humanidade.
Embora sejam apenas 0, 2 por cento da população mundial, os palestinos representam mais de 8 por cento do total de refugiados no mundo.
Mas a história real dos refugiados árabes em geral e dos palestinos no Brasil desmente todas as tentativas de Jair Bolsonaro de construir mais um de seus edifícios de ódio.
Há pouco mais de um ano recebi o convite para conhecer o Amazonas, dar uma palestra na Universidade Federal do Amazonas, e pude conhecer o legado inimaginável dos refugiados palestinos em Manaus. Pude entrevistar mulheres palestinas- brasileiras como Muna Hajoi, cuja família faz parte da história do desenvolvimento comercial na cidade, e cujos pais faleceram recentemente de covid-19 pela incapacidade do governo Bolsonaro de fornecer oxigênio ao estado do Amazonas.
Pude conhecer mulheres como Hamida e Maria do Carmo, respectivamente filha e esposa de um refugiado palestino e que hoje trabalham preservando a culinária e as tradições palestinas em Manaus. Pude conhecer e entrevistar o empresário Mamoun Inwas, nascido na Palestina, que chegou a Manaus em 1986, com o sonho de ver os filhos crescerem sem terem suas vidas destruídas por Israel, e com o sonho de abrir uma loja.
Mamoun me contou, emocionado, que depois de muito trabalho conseguiu abrir a primeira loja em 1989 na rua Marechal Deodoro. Desde então, não parou mais de criar empregos para centenas de amazonenses.
O palestino é hoje o proprietário de uma rede de mais de 20 lojas e um shopping na Zona Leste da cidade e recebeu recentemente uma linda homenagem da cidade que o adotou.
O sonho do jovem palestino Mamoun que um dia chegou assustado e pobre em Manaus, gera hoje prosperidade, novos sonhos e mais de 2 mil empregos na cidade que o acolheu.
Pude conhecer também o jornalista árabe- libanês Anwar Assi, filho de um dos homens que mais trabalharam para desenvolver o comércio de Manaus assim que chegou em solo brasileiro. Anwar foi também o jornalista que cobriu a Guerra do Líbano ( 1975 a 1990), morando em Beirute e escrevendo para jornais internacionais sobre a dor dos refugiados palestinos do outro lado do mundo.
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Foi em Manaus também que conheci uma das histórias mais humanas e emocionantes envolvendo refugiados muçulmanos em um país cristão.
Em 2018, alguns assaltantes invadiram uma igreja católica da cidade e roubaram objetos e o dinheiro usado em obras sociais da comunidade.
O que fizeram os muçulmanos palestinos quando souberam da perda dos católicos de Manaus?
Uniram forças entre os palestinos muçulmanos locais para que pudessem doar o dinheiro das obras e ajudar os cristãos naquele momento.
” O que nos trouxe aqui foi um gesto de solidariedade com nossos irmãos e vizinhos. Infelizmente, eles tiveram uma invasão na casa de Deus. A dor deles é a nossa dor. Isto não poderia passar despercebido pela comunidade islâmica” , disse naquela tarde Walid Saleh, um dos líderes da comunidade islâmica de Manaus.
O sheikh da Mesquita de Manaus, Mohammad Hussein, também foi até a casa do arcebispo católico para entregar a doação da comunidade muçulmana aos cristãos. ” O Centro Islâmico tomou conhecimento do que aconteceu com os irmãos da Igreja de São Sebastião. Viemos então colocar em prática um ensinamento do Alcorão, que é a mensagem da paz. A real mensagem do islamismo é a divulgação da mensagem da paz. Ela só acontece quando há a solidariedade e fraternidade entre todos nós”, disse o líder muçulmano ao ajudar os cristãos naquele momento.
Emocionei-me muitas vezes em Manaus e no Rio de Janeiro ao lado dos refugiados palestinos e descobri que seu legado ao Brasil é muito maior do que as tentativas de um presidente de alimentar o ódio entre nós.
Um legado lindo e gigantesco que não se compara às tentativas de alguém que, não conseguindo mobilizar mentes e corações para grandes projetos humanos, os mobiliza para o mais covarde jogo liderado pelos tiranos: o jogo do ódio aos diferentes de nós, aos mais vulneráveis, o que tem gerado apenas mais guerras e mais mortes.