O termo “trabalho análogo ao de escravo” deriva do fato de que o trabalho escravo formal foi abolido pela Lei Áurea
De acordo com o artigo 149 do Código Penal brasileiro, são elementos que caracterizam o trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador), jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele). Os elementos podem vir juntos ou isoladamente.
O termo “trabalho análogo ao de escravo” deriva do fato de que o trabalho escravo formal foi abolido pela Lei Áurea em 13 de maio de 1888. Até então, o Estado brasileiro tolerava a propriedade de uma pessoa por outra não mais reconhecida pela legislação, o que se tornou ilegal após essa data.
Não é apenas a ausência de liberdade que faz um trabalhador escravo, mas sim de dignidade. Todo ser humano nasce igual em direito à mesma dignidade. E, portanto, nascemos todos com os mesmos direitos fundamentais que, quando violados, nos arrancam dessa condição e nos transformam em coisas, instrumentos descartáveis de trabalho. Quando um trabalhador mantém sua liberdade, mas é excluído de condições mínimas de dignidade, temos também caracterizado trabalho escravo.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, através de sua relatora para formas contemporâneas de escravidão, apoiam o conceito utilizado no Brasil.
Em poucas palavras, o que é trabalho escravo?
É quando o trabalhador não consegue se desligar do patrão por fraude ou violência, quando é forçado a trabalhar contra sua vontade, quando é sujeito a condições desumanas de trabalho ou é obrigado a trabalhar tanto e por tantas horas que seu corpo não aguenta.
O conceito de trabalho escravo é frágil?
Não, não é. O artigo 149 do Código Penal, que prevê de dois a oito anos de cadeia para quem se utilizar dessa prática, é de 1940 e foi reformado em 2003 para ficar mais claro. Ele prevê o crime em quatro situações: cerceamento de liberdade de se desligar do serviço, servidão por dívida, condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva.
Quem concorda que o conceito atual é bom?
Tribunais já utilizam, sem problemas, o conceito de trabalho escravo. A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal tem aceitado processos por esse crime com base no artigo 149. A Organização Internacional do Trabalho reconhece o conceito brasileiro. A relatora para formas contemporâneas de escravidão das Nações Unidas, Gulnara Shahinian, elogia o conceito brasileiro (ao contrário do que querem fazer crer algumas declarações de parlamentares que distorceram suas palavras). O governo federal, as empresas do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (que reúne as maiores empresas do país) e organizações sociais brasileiras defendem a manutenção do atual conceito de trabalho escravo.
“Condições degradantes de trabalho” e “jornada exaustiva” são termos imprecisos, não?
De forma alguma. O que está tutelado no artigo 149 não é apenas a liberdade, mas sim a dignidade da pessoa humana. Ou seja, é importantíssimo que se mantenha a punição para quem desrespeita a dignidade do trabalhador, sujeitando-o a condições de alojamento, alimentação, trabalho, saúde, segurança desumanas. Ou que o obrigue a trabalhar tanto e por tantas horas que o seu corpo não suporte e ele acabe morrendo. Os auditores fiscais do trabalho utilizam instruções normativas e normas regulamentadoras para cumprir seu papel. Mas a Justiça utiliza a CLT e a Constituição para julgar se o trabalho é degradante ou não e se a jornada é exaustiva ou não. Ou seja, leis mais do que consolidadas no país.
O atual conceito causa insegurança jurídica no campo porque ninguém sabe o que é trabalho escravo.
Isso é uma falácia. A tentativa de mudar um conceito conhecido e aplicado é que vai levar à insegurança jurídica, com milhares de processos tendo que tomar um novo rumo, trabalhadores desconhecendo seus direitos, produtores rurais na dúvida de que decisões tomar. Até porque qualquer mudança, seja no artigo 149, seja em lei específica, será questionado não apenas junto ao STF, por reduzir a proteção do trabalhador, mas também nas Naçnoes Unidas e na OIT. O que é melhor? Um produtor reconhecer esse conceito como válido e se adequar ou uma guerra jurídica de anos, sendo que certamente o Supremo concederia liminar para que a definição do 149 seguisse valendo até uma decisão final? Os parlamentares consideram o conceito inseguro porque, na verdade, não concordam com ele.
Há produtores rurais que foram autuados por trabalho escravo devido à distância entre beliches, espessura do colchão, falta de copos para beber água, de carteira assinada e de um local adequado para refeições.
Esse é um argumento facilmente desconstruído. Quando um auditor fiscaliza um produtor, ele emite autos de infração sobre todos os problemas encontrados. Mas não é auto de infração de colchão fino que configura o trabalho escravo. Quando ouvir um produtor ou parlamentar dizer isso, pergunte sobre os outros autos de infração recebidos, sobre os quais nunca alguém quer falar. Além do mais, não é apenas um auto que caracteriza trabalho escravo, mas um pacote deles, mostrando as péssimas condições dos trabalhadores.
Gostaria de alguns números sobre trabalho escravo.
– De 1995, quando o governo federal criou o sistema público de combate a esse crime, até 2012, 43.545 pessoas foram libertadas do trabalho escravo no Brasil;
– No mundo, a estimativa da OIT é que sejam, pelo menos, 21 milhões de escravos*;
– Não há estimativa confiável do número de escravos no país. Por isso, o governo não usa nenhum número;
– Na zona rural, as principais vítimas são homens, entre 18 e 44 anos; Na zona urbana, há também uma grande quantidade de sul-americanos, principalmente bolivianos. Nos bordéis, há mais mulheres e crianças nessas condições;
– Dos libertados entre 2003 e 2009, mais de 60% eram analfabetos ou tinham apenas o quarto ano incompleto. Ou seja, eram adultos que não estudaram quando crianças. Trabalho escravo também é filho do trabalho infantil;
– O Maranhão é o principal fornecedor de escravos e o Pará é o principal utilizador;
– As atividades econômicas em que trabalho escravo mais tem sido encontrado na zona rural são: pecuária bovina, desmatamento, produção de carvão para siderurgia, produção de cana-de-açúcar, de grãos, de algodão, de erva-mate, de pinus. Também há importante incidência em oficinas de costura e em canteiros de obras nas cidades;
Por que se usa a expressão “trabalho análogo ao de escravo”?
Porque o trabalho escravo foi formalmente abolido em 13 de maio de 1888 e o Estado passou a considerar ilegal um ser humano ser dono de outro. O que permaneceram foram situações semelhantes ao trabalho escravo, tanto do ponto de vista de cercear a liberdade quanto de suprimir a dignidade do trabalhador.
Confiscar propriedades está previsto na Constituição?
Sim, está. A PEC inclui o trabalho escravo no artigo 243 da Constituição, que já prevê o confisco de terras com plantações de psicotrópicos. Além disso, a Constituição prevê que toda a propriedade deve ter função social. Trabalho escravo é uma das maiores negações aos direitos humanos, repudiado em todo o mundo. Portanto, quem usa trabalho escravo não está cumprindo a função social de sua propriedade.
A verdadeira intenção dessa lei é a reforma agrária, pois muitas terras serão confiscadas.
Não. Considerando o confisco de terras com psicotrópicos, já em vigor, de 2003 a 2007, 18 propriedades nessas condições – todas elas no Nordeste e com uma área total aproximada de 5.200 hectares – foram destinadas a assentamentos. De acordo com a Coordenação Geral de Polícia de Repressão aos Entorpecentes da Polícia Federal, apenas em 2004, 36 plantações de maconha foram destruídas em todo o país. Repare que o número de confiscos é pequeno se considerada a quantidade de plantações encontradas e destruídas devido ao rigor das decisões judiciais. Ou seja, apenas um número reduzido daqueles que forem flagrados é que devem perder efetivamente suas terras.
Não é justo apenas produtores rurais perderem suas propriedades. Por que a PEC não passa a valer também para o meio urbano?
E ela vale. Devido a um pedido de parlamentares ligados aos produtores rurais, o texto da PEC incorporou os imóveis urbanos em 2004.
O condenado por trabalho escravo irá perder todas as terras que possui por conta da lei?
Não. Apenas aquela em que trabalho escravo foi encontrado.
Para que criar mais uma lei para combater trabalho escravo?
As leis existentes não têm sido suficientes para resolver o problema. Mesmo com a aplicação de multas, o corte do crédito, a perda de clientes, os processos trabalhistas e criminais, usar trabalho escravo ainda é um bom negócio para muitos empresários porque barateia os custos com mão de obra. A prática tem demonstrado que uma medida drástica, que coloque em risco a perda da propriedade em que foi utilizado trabalho escravo, ajudará a coibir com eficiência esse crime.
O que vocês chamam de trabalho escravo é apenas a cultura da região.
A justificativa é falsa, embora seja comumente usada por alguns produtores rurais. Mesmo que a prática fosse comum em determinada região – o que não é verdade, pois é utilizada por uma minoria dos produtores rurais – jamais poderia ser tolerada. Todo e qualquer crime deve ser combatido, com maior força exatamente onde for mais usual a sua prática. O desrespeito à dignidade ou o cerceamento da liberdade não podem ser encarados como manifestação cultural de um povo, mas sim como a imposição histórica da vontade dos mais poderosos. Além do mais, essa suposta “cultura da região” é compartilhada apenas por aqueles que concordam com o trabalho escravo, uma vez que a população mais pobre, vítima da escravidão, tem lutado desde a década de 70 para que seus direitos sejam efetivados.
A fiscalização abusa do poder e é guiada por um viés ideológico. A Polícia Federal entra armada nas fazendas.
As equipes móveis de fiscalização (compostas por auditores do Ministério do Trabalho e Emprego, procuradores do Ministério Público do Trabalho, policiais federais ou policiais rodoviário federais) devem ir prevenidas às ações de fiscalização uma vez que muitos seguranças, gatos, prepostos, gerentes e vaqueiros das fazendas andam armados para intimidar trabalhadores. De revólveres a rifles, o arsenal de algumas fazendas não é pequeno. Muitas vezes as equipes de fiscalização têm suas vidas ameaçadas, tendo sido recebidas a bala. Além disso, cabe também à Polícia Federal abrir inquéritos e, se necessário, prender os culpados quando confirmado o flagrante do crime.
A culpa não é do fazendeiro e sim de gatos, gerentes e prepostos. O empresário não sabe dos fatos que ocorrem dentro de sua fazenda e por isso não pode ser responsabilizado.
O empresário é o responsável legal por todas as relações trabalhistas de seu negócio. A Constituição Federal de 1988 condiciona a propriedade ao cumprimento de sua função social, sendo de obrigação de seu proprietário tudo o que ocorrer nos domínios da fazenda. Por isso, o fazendeiro tem o dever de acompanhar com frequência a ação dos funcionários que a administram para verificar se eles estão descumprindo alguma norma da legislação trabalhista, além de orientá-los no sentido de contratar trabalhadores de acordo com as normas estabelecidas pela CLT.