Entrevista: Ariadne Natal

“A demanda por linchamentos ultrapassa a linha da justiça e vira vingança”, diz especialista

Somente no Maranhão, 30 mortes por esta violência foram registradas nos últimos dois anos; no mês passado, o estado registrou mais uma vítima.

O caso de Cleidenilson Pereira da Silva, de 29 anos, chocou em julho passado. Amarrado em um poste, o jovem foi espancado até a morte por moradores do bairro São Cristóvão, em São Luís, capital do Maranhão. Nos últimos dois anos, foram registradas 30 mortes em situação de linchamento no estado, segundo balanço da polícia local.

Para entender o contexto que envolve casos como esse, o Brasil de Fato entrevistou Ariadne Natal, que é mestre em sociologia e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. Ela explica a origem e os desdobramentos desse tipo de violência.

Brasil de Fato – Na sua pesquisa, quais foram os primeiros casos encontrados de linchamentos?

Ariadne Natal – A tradição da literatura sobre linchamentos é principalmente norte-americana e trata dos linchamentos que aconteciam entre 1880 e 1930. Esse período, final da escravidão e da Guerra Civil no país, coincide com um surto de linchamentos de negros por motivação racial. Nos Estados Unidos, houve uma reação dos proprietários brancos contra a aquisição de direitos pelos negros. Houve uma tentativa de submeter os negros à violência e ao arbítrio daquela população dominante, ou seja, os brancos. Na época, um branco acusado de um crime era recebido com a lei formal, enquanto o negro era recebido com o justiçam Somente no Maranhão, 30 mortes por esta violência foram registradas nos últimos dois anos; no mês passado, o estado registrou mais uma vítima.

O caso de Cleidenilson Pereira da Silva, de 29 anos, chocou em julho passado. Amarrado em um poste, o jovem foi espancado até a morte por moradores do bairro São Cristóvão, em São Luís, capital do Maranhão. Nos últimos dois anos, foram registradas 30 mortes em situação de linchamento no estado, segundo balanço da polícia local.

Para entender o contexto que envolve casos como esse, o Brasil de Fato entrevistou Ariadne Natal, que é mestre em sociologia e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universida ento popular.

Construindo um paralelo com o Brasil, os linchamentos aparecem com mais frequência na redemocratização na década de 1980, justamente, no período de maior contestação do uso da violência utilizada durante a Ditadura Militar. Mas, simultaneamente, existe uma reação popular, e isso é muito triste, no sentido de dizer que aquelas pessoas não vão ter seus direitos garantidos. Elas continuarão sendo submetidas à violência física.

Quem são essas pessoas que sofrem linchamentos?

A pesquisa mostrou que a maioria das vítimas são homens, jovens, com idade entre 20 e 30 anos, morador de periferia. O perfil é muito similar às vítimas de homicídios tradicionais. Os casos acontecem principalmente na periferia, e isso é muito cruel porque são os próprios moradores do local que estão agindo contra seus conterrâneos, com perfis socioeconômicos bastante similares.

Quais são os crimes que essas pessoas cometem que geram esse tipo de reação?

São principalmente crimes contra a vida, como homicídios, crimes contra os costumes, que é o caso do estupro, e, apesar de ter diminuído ao longo do tempo, também se constata crimes contra o patrimônio. Eu não vi, ao longo da minha pesquisa que é concentrada em um período de trinta anos, um linchamento motivado por tráfico de drogas, por exemplo, que é uma das maiores motivações para esse encarceramento em massa atualmente.

Existem tipos de regras que, se quebradas, são consideradas mais graves. As vítimas preferenciais têm o perfil de vulnerabilidade, ou seja, são aqueles que são colocados como ‘elimináveis’. Eles já são vítimas da violência policial e dos homicídios. No caso dos linchamentos, as vítimas são aqueles que o corpo é passível de uma punição física. É essa punição é mais difícil de acontecer com um indivíduo que é considerado de alto status social.

Qual é a responsabilidade do Estado ou da ausência do Estado nesse contexto? Atualmente, existe uma falta de confiança na polícia, por exemplo…

Nós temos uma falta de confiança na polícia, na justiça e nas instituições de um modo geral. Nos anos 1980, principalmente, era muito recorrente a questão da ausência do Estado. A polícia não estava presente, não tinha capacidade física de chegar às periferias, não tinha viaturas, etc. A cidade cresceu muito mais rápido que a reação do Estado. Em um evento dessa natureza [o linchamento], que acontece muito rápido, a chance da polícia chegar a tempo é muito pequena. É uma dificuldade não só de impedir o linchamento, como também de prevenir os crimes que motivam os linchamentos. Essa é a face mais visível, é a justificativa mais comum.

Além disso, você tem outra questão que é a incapacidade ou ineficiência do Estado. Muitas vezes ouvimos que “quando a polícia aparece é leniente, prende e solta, ou as punições não são severas o suficiente”. Nesse caso, quando as pessoas clamam por penas mais duras, não é uma tentativa de endurecimento do rigor da lei. O que está em jogo é uma tentativa de instaurar um sistema de violência. É uma percepção de que aquele que comete um crime deve sofrer uma violência proporcional ou maior do que o dano que ele causou. Essa demanda ultrapassa a linha da justiça e passa para o campo da vingança. É uma demanda de uma população que ainda não aderiu aos valores democráticos e de respeito aos direitos humanos.

O que o Estado poderia fazer para diminuir ou evitar ações desse tipo?

Eu vejo que as medidas estão relacionadas com as próprias causas. Para que as pessoas confiem nas instituições, elas precisam estar funcionando. As leis precisam ser cumpridas, não apenas pela população como pelo Estado. É importante o estabelecimento de um sistema de segurança pública e justiça que dê respostas adequadas no sentido de garantir maior segurança e menos seletividade na hora de punir as pessoas.

Por outro lado, você tem aquela questão dos direitos humanos. O Estado precisa estar imbuído desses valores, mas isso não acontece. No Estado de São Paulo, por exemplo, as instituições não são orientadas nesse sentido. É uma grande piada. A ideia de direitos humanos é que todos sejam tratados de maneira igual, que todos tenham acesso às mesmas oportunidades e que, quando alguém é acusado de cometer um crime, essas pessoas tenham os mínimos direitos garantidos, como o direito à defesa. Isso não é algo que está presente na fala da população e é visto muitas vezes como enrolação.

No ano passado, a jornalista do SBT e da Jovem Pan, Rachel Sheherazade, defendeu a política do “olho por olho, dente por dente”. Você se recorda de outra cobertura enviesada, durante esses trinta anos de análise da mídia, defendendo esse tipo de ação?

Você vê isso em jornais policialescos, principalmente nesses programas da televisão que dão espaço na linha editorial para os comentários. No jornalão tradicional, em geral, a coisa é mais sutil e fica mais na questão da informação. A defesa desse tipo de ação acontece principalmente nesses jornais policiais, como Cidade Alerta e Brasil Urgente, por exemplo.

Nesses casos, o linchamento é sempre apresentado com certa dualidade: “é errado, mas…”. Depois do “mas”, aparece uma série de coisas. “A gente entende que a população está revoltada, não existe caminhos, cidadão não tem sangue de barata, tem que agir mesmo, parabéns aos homens que tiveram coragem de enfrentar esses bandidos…”. Tem sempre uma ponderação, mas em seguida vem uma chuva de aprovação. Enfim, não me lembro de um caso como esse da Sheherazade, que teve uma fala emblemática dessa maneira.

Existe uma explicação social para o linchamento?

Algumas pessoas fazem uma leitura de que o linchamento é um momento de inconsciente coletivo, que as pessoas envolvidas têm a racionalidade suspensa naquele momento. Eu não consigo fazer essa leitura, porque a ação é seletiva. Ela não atinge todos de maneira igual. A multidão lincha um determinado tipo de pessoa, com um determinado tipo de acusação e, por isso, não é irracional. Não é possível imaginar essas pessoas como bárbaras ou irracionais. O mais cruel de tudo é que são pessoas normais, absolutamente normais. Não existe nada de extraordinário nas pessoas que lincham, não são psicopatas. São pessoas que geralmente se conhecem, mas que em poucos segundos se tornam homicidas. Isso é o mais cruel e o mais assustador. Porque se fosse um ser desviante, um louco, você conseguiria explicar como uma questão patológica. Mas a patologia, nesse caso, é social.

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