O detalhe incrível da história é que Mário, na verdade, era Elisa Sánchez Loriga, disfarçada com conhecimento de Marcela, para conseguirem se casar na Igreja. Até hoje, esse é o único casamento do mesmo sexo conhecido na história da Igreja Católica espanhola. É também um caso pioneiro de união homossexual no mundo.
Agora, a história do casal virou filme e é possível assistir na netflix. “Quando eu penso sobre essas duas mulheres e a coragem de uma delas de se passar por homem, foram muito valentes”, afirma Isabel Coixet, realizadora do filme.
Elisa e Marcela Gracia Ibeas se conheceram em meados dos anos 1880 em La Coruña. “Marcela era aluna da escola de magistério. Elisa tinha estudado anteriormente para a mesma carreira e estava trabalhando na escola. Foi então que elas se apaixonaram”, conta o escritor Narciso Gabriel, autor do livro Marcela e Elisa, muito além dos homens.
O casal enfrentou objeção da família de Marcela, que a enviou para Madri para que ficasse longe de Elisa. Mas, de acordo com Narciso Gabriel, as duas deram um jeito de continuar a se ver. Nessa época elas teriam planejado o casamento.
Primeiro, Elisa e Marcela simularam que brigaram e que não estavam mais juntas. Além disso, Marcela, estava grávida de um homem não identificado e anunciou que se casaria com um primo de Elisa, chamado Mário, que teria sido criado em Londres.
Então, com corte de cabelo curto e vestida de terno, Elisa se passou pelo rapaz.
Assédio da imprensa e da sociedade
Após o casamento, Elisa e Marcela tiveram pouco tempo de sossego. Uma foto do casal acabou na primeira página do jornal local, La Voz de Galicia, com os dizeres: “Um casamento sem um noivo”.
A história se espalhou rápido. “O público mostrou um interesse enorme em saber os detalhes da história, a imprensa competiu para publicar a foto exclusiva. O caso teve uma grande repercussão não só na Galícia, mas também em Madri e na imprensa de outros países, como França, Bélgica e Argentina”, contou Gabriel. A Justiça, por sua vez, decretou um mandado de prisão.
Diante do assédio da imprensa e da perseguição da Igreja e da polícia, o casal fugiu para a cidade do Porto, em Portugal.
Em terras portuguesas, Elisa passou a se chamar de Pepe. Sob o disfarce de um casal heterossexual, as duas viveram por dois meses. Nesse período, nasceu a filha de Marcela. Porém, em agosto de 1901, a pedido da polícia espanhola, foram detidas e levadas para a prisão em Portugal.
Segundo Gabriel, o caso começou a ganhar “uma cobertura em Portugal tão espetacular como a que aconteceu na Espanha”. Mas, ao contrário das notícias espanholas, a imprensa portuguesa foi favorável ao casal. “A imprensa tomou partido da causa de Marcela e Elisa, assim como parte da sociedade portuguesa e alguns residentes espanhóis do Porto”, conta ele.
Apesar de toda essa comoção, Portugal aceitou a extradição do casal, solicitada pela Espanha. Porém, antes de serem enviadas de volta, Elisa foi inocentada da acusação de adulteração de documento e Marcela, de tentar encobrir o crime.
Antes da extradição, no entanto, Marcela e Elisa escaparam. Desta vez, rumo à Argentina, onde, novamente, mudaram suas identidades. Em Buenos Aires, Marcela passou a se chamar Carmen; Elisa assumiu o nome de Maria.
Como milhares de imigrantes galegos, casal Elisa e Marcela começou uma nova vida em Buenos Aires
Nova vida na Argentina
Elisa desembarcou na Argentina em 1903, dois anos após o casamento. Pouco tempo depois, chegou Marcela, acompanhada da sua filha.
A vida das jovens em Buenos Aires, a princípio, não parecia ser muito diferente da de milhares de imigrantes galegos que viviam na cidade.
Alguns meses depois, no entanto, a história sofreu uma nova reviravolta. Elisa – que na Argentina tinha o nome Maria – se casou com um homem de origem dinamarquesa. “O casamento não foi feliz e termina mal, entre outras coisas, porque Elisa se recusa a ter relações sexuais com o marido”, conta Gabriel. O homem acabou denunciando Maria, dizendo que suas intenções ao se casar com ele eram fraudulentas.
O que aconteceu depois? Elisa continuou vivendo com seu marido dinamarquês? Para onde foram Marcela e sua filha? O desfecho desta história é desconhecido. As pistas das vidas das protagonistas se perderam nesta época, afirma Gabriel. Há apenas um relato de um jornal mexicano, de 1909, dizendo que Elisa havia se suicidado no país.
Veronica e Tiana foram as primeiras mulheres a se casarem no civil na Espanha, em 2005
Apesar de o casamento civil entre homossexuais ser legal na Espanha há mais de uma década, ativistas LGBT no país dizem que ainda hoje há ecos da luta de Elisa e Marcela.
“Uma lei não provoca uma mudança automática na sociedade. Ainda hoje há pessoas que mantêm sua sexualidade em segredo. Outras ainda se casam mas não tiram a licença a que têm direito após o casamento, devido a vergonha ou medo de ser demitidas”, fala a socióloga e ativista Inmaculada Mujika Flores.
Mais de cem anos depois, o “casamento sem homem” de Elisa e Marcela continua causando admiração.