Deixem a Ilha Acaray em paz

Foto: Reprodução

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Por Léo Miguel Endrigo Pommer – Opinião

Ativistas da causa ambiental de Foz do Iguaçu receberam com preocupação e assombro notícia veiculada em portais locais de comunicação, nos últimos dias, dando conta de que o governo municipal de Foz do Iguaçu encaminhou ao governo federal “proposta para utilização turística da Ilha Acaray”, visando à implantação de um “complexo turístico” na enigmática área de mata situada no leito do majestoso rio Paraná. Os dois juntos, rio e ilha, formam um cenário de singular plasticidade. São duas entidades, dois corpos naturais magníficos que dividem espaço em um enlace harmonioso, quase romântico.

A expressão “complexo turístico” soa como um canto desafinado aos ouvidos mais atentos. Mais que isso, retumba como uma ameaça, porque ela remete a uma lógica desenvolvimentista mercenária e anacrônica, bem ao gosto do capitalismo predatório que devasta sem nenhum pudor a pretexto de gerar riquezas que nunca chegam a todos de maneira justa e equitativa, mas que sempre acabam concentradas nas mãos de poucos.

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado consagrado no artigo 225 da Constituição Federal de 1988 é um direito fundamental da pessoa humana, e está intrinsecamente ligado ao direito fundamental à vida. A proteção do meio ambiente constitui um dever imposto pela Constituição Federal ao poder público, portanto não está à livre disposição do administrador público decidir preservá-lo ou não. Não há margem para discricionariedade. É um dever-poder.

Além disso, é direito coletivo ou difuso que possui caráter transindividual e transgeracional, isto é, ele transcende a esfera das individualidades e também a compreensão de temporalidade mais que qualquer outro direito fundamental previsto na CFRB ou em qualquer diploma infraconstitucional. Ele pertence individualmente a cada pessoa e a todas elas, universalmente. Pertence a nós, agora, e às futuras gerações.

A legislação ambiental brasileira, em vários de seus dispositivos, preconiza que o turismo ecológico tenha por finalidade precípua o desenvolvimento de ações educativas relacionadas à conservação e preservação do meio ambiente, devendo o ecoturismo concorrer para o desenvolvimento de uma consciência ambiental nos cidadãos que dele se beneficiam.

Diante da emergência climática global e da iminência de ecossistemas sofrerem colapsos, colocando em risco a vida no planeta, e também tendo em vista o compromisso assumido pelo atual governo federal com o fortalecimento da política nacional do Meio Ambiente, entre cujas medidas se inclui a ampliação das áreas florestais legalmente protegidas, é necessário que, em âmbito local, não destoemos dessa tendência protecionista em relação à natureza.

Envolta por uma aura de bucolismo e dotada de grande beleza cênica, a Ilha Acaray é uma área quase intocada pela atividade humana, possuindo, no máximo, vestígios da presença ou circulação de moradores da região, que possuem hábitos pacatos e ribeirinhos e que mantêm uma relação de cumplicidade natural com o local, a exemplo dos pescadores que podem ser vistos habitualmente na margem do rio Paraná.

Antes de se conceber uma proposta de empreendimento turístico para a Ilha Acaray, é imperioso que se pense em um modelo de gestão governamental séria e responsável para ela. Não se pode admitir que uma área verde com estas características naturais seja objeto de projetos duvidosos de exploração turística, que causem supressão de sua vegetação e, como consequência, afetem o habitat da fauna existente no local, adulterando ou degradando sua biota e seu pequeno ecossistema. Essa ilha é um santuário natural, e santuários não devem ser violados.

Faixa territorial fronteiriça e portanto pertencente à União, a Ilha Acaray precisa ser submetida a um processo de transformação em Unidade de Conservação Federal de Proteção Integral, possivelmente na modalidade de Monumento Natural, dadas suas características, com permissão para visitação pública realizada dentro de critérios rigorosamente legais e ecologicamente corretos. Para tal, deve-se seguir o rito estabelecido nas normas relativas à criação de Unidades de Conservação, as quais preveem, entre outros procedimentos, a realização de estudos técnicos para definição da classificação da UC e também consulta pública.

Somente depois de instituída a forma de gestão governamental é que se poderá buscar um modelo turístico baseado em valores e princípios ecoéticos que ultrapassam a noção reducionista da ética antropocêntrica e especista, a qual coloca a espécie humana no centro orbital das preocupações sem considerar a delicada e indissociável relação entre o homem e o meio ambiente.

Existe uma relação de interdependência entre o homem e a natureza que não pode mais ser ignorada pela humanidade, e que reclama a instituição de um novo paradigma econômico, preservacionista e limpo, sob pena de comprometermos não só a perpetuidade da vida animal e vegetal do planeta, mas a do próprio ser humano. Precisamos instaurar um paradigma ecoético.

Foz do Iguaçu, cidade cercada de natureza exuberante e destino turístico que abriga uma das maravilhas naturais mais imponentes e emblemáticas do planeta, tem vocação para ser protagonista na inauguração de uma nova era humana, pautada pela responsabilidade socioambiental, atuando na transformação das consciências para a preservação da casa planetária que coabitamos.

Antes de propor projetos emocionados, é necessário que o município de Foz faça seu dever de casa satisfatoriamente, de maneira racional e pragmática. É necessário executar, por exemplo, ações de recuperação de áreas degradadas e de despoluição de rios que cortam a cidade, como o rio Mathias Almada, que deságua no rio Paraná, justamente nas proximidades da Ilha Acaray, e no qual foi realizado despejo de resíduo de concreto há poucos dias, ação que foi filmada por populares e denunciada. Qual o sentido de se criar um “complexo turístico” em uma ilha que se situa ao lado de um rio poluído? E mais, o que será feito com o esgoto despejado diretamente no rio Paraná pontualmente em frente à ilha?

Além do impacto ambiental, outro aspecto a ser considerado em propostas dessa ordem é o seu impacto social. É necessário perguntar: além de ambientalmente responsável, ela é socialmente justa e inclusiva? O projeto deve viabilizar e oportunizar à população ribeirinha alternativa de emprego e renda diretamente relacionada à exploração ecoturística do local.

Que a população do Jardim Jupira seja ouvida e integrada a um projeto que combine turismo sustentável e inclusão social, trazendo desenvolvimento econômico e humano para a comunidade, tão esquecida pelos ávidos adoradores do lucro excludente, esse Baal da pós-modernidade, como qualquer outra comunidade periférica. Em Foz, cidade de castas, há muitas dessas comunidades vulneráveis, que contrastam com os empreendimentos babilônicos de recreação e turismo que enchem os olhos do turista. Do turista, ou do morador rico.

Para ouvir essa população, todavia, é necessário ir até ela, sem medo de pobre e sem sobrevoo de helicóptero. É em solo, caminhando pelas ladeiras das vielas estreitas que arterizam a comunidade em direção à barranca do majestoso rio Paraná e que conduzem à visão da esplendorosa ilha. É se misturar sem reservas e protocolos ao cenário onde a vida do povo simples se desenvolve, é sentir o cheiro das gentes, é olhar nos olhos desses moradores e escutar com sincero interesse o que eles têm a dizer.

Qualquer proposta de exploração turística da ilha Acaray que não combine proteção ambiental com inclusão social da população que vive às margens do rio Paraná e no entorno da ilha é mero oportunismo para a satisfação do interesse de poucos. Se o interesse é de poucos, ele não é público. Se o interesse não é público, ele não promove a redução das desigualdades e nem a proteção ambiental. Logo, ele é um interesse ilegítimo. É só delírio megalomaníaco e perigoso.

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*Léo Miguel Endrigo Pommer é pessoa trans, Bacharel em Direito, Educador Social, defensor dos direitos humanos e entusiasta da causa ambiental e animal

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor (a) e não refletem necessariamente a política editorial do Fronteira Livre

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