O Presídio Central, de Porto Alegre, é a pior cadeia brasileira, aponta o jornalista Daniel Scola, após realizar série de reportagens em instituições gaúchas. Superlotação e organização de facções criminosas são principais mazelas, compondo uma verdadeira escola do crime
Até mesmo o famigerado Carandiru, conhecido pelo massacre do qual foi palco em 1992, e implodido em 2002, tinha melhores condições do que o presídio Central, localizado em Porto Alegre. Projetado para receber 1,8 mil apenados, abriga 5 mil pessoas em celas em estado deplorável, assinala o jornalista Daniel Scola, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. No mesmo caminho, vai a Penitenciária Estadual do Jacuí, mais conhecida como Tio Patinhas. Em dezembro, quando Scola esteve lá pela primeira vez, havia 2 mil presos. Cinco meses depois, o número é de 2,5 mil condenados. “É para lá que vão criminosos do Vale dos Sinos – que não têm uma cadeia em regime fechado decente – e de toda a região metropolitana.” O mais assustador é a afirmação de uma autoridade, que disse a Scola, “com todas as letras”, que o “Estado controla as cadeias até a porta da frente”. No lado de dentro, quem comanda são os presos. É a chamada lei paralela, que existe há tempo, mas se fortalece com a superlotação e falta de estrutura.
Daniel Scola graduou-se em Jornalismo, pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), e é professor licenciado nos cursos de Jornalismo e Comunicação Digital da Unisinos. Atua como repórter do Grupo Rede Brasil Sul de Telecomunicações (RBS), da Rádio Gaúcha. Para a televisão produziu a série de reportagens “Caos nos presídios”, exibida de de 23 a 25 de março de 2009.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os principais problemas do sistema prisional que detectou em sua reportagem “Caos nos presídios”?
Daniel Scola – Superlotação. Locais com o dobro, até o triplo da capacidade. O maior problema atualmente é o Presídio Central. São 5 mil presos num espaço para 1,8 mil. A maioria das celas está em ruínas. Imagine, então, que numa galeria para 150 estão 450 presos. Nestas galerias, sem divisão alguma, os presos se misturam em grandes bandos. Além disso, penso que há um outro grande problema: a organização de facções criminosas. Então, num ambiente superlotado, sem estrutura, os criminosos, que deveriam estar “privados de liberdade” ficam, na verdade, reunidos em grandes grupos, numa verdadeira “escola’ do crime.
IHU On-Line – Por que afirma que o Central é maior e pior presídio do país?
Daniel Scola – Porque concentra quase 5 mil presos. Até recentemente, não era essa a situação. Mas, em outros estados, as grandes penitenciárias foram reduzidas. Até o ícone da falência do sistema prisional, o Carandiru, em São Paulo, foi implodido. Em 1999, passei dois dias produzindo uma reportagem dentro do Carandiru. E posso garantir: a estrutura da cadeia paulista era melhor que a do Central. É bom que se ressalte: o Rio Grande do Sul não é o pior estado em termos de cadeias. Mas tem a pior.
IHU On-Line – Por que a Penitenciária Estadual do Jacuí está prestes a se igualar ao Central?
Daniel Scola – Porque a sua ocupação avança num ritmo assombroso. Em dezembro, eu estive lá pela primeira vez. Havia 2 mil presos. Hoje são dois mil e quinhentos. Ou seja, quinhentos presos em cinco meses. É para lá que vão criminosos do Vale dos Sinos – que não têm uma cadeia em regime fechado decente – e de toda a região metropolitana. Sem contar na estrutura, que é precaríssima.
IHU On-Line – Os presídios têm uma espécie de lei própria. Que exemplos dessa “legislação paralela” você presenciou?
Daniel Scola – Muitos. Nessa apuração, uma autoridade me disse com todas as letras: o Estado controla as cadeias até a porta da frente. Dentro, quem comanda são os presos. A chamada lei paralela existe há muito tempo. O fenômeno mais recente é o seu fortalecimento. E isso se deve à falta de estrutura e superlotação. Isso favorece os criminosos. Quando eu fiz a série, recebi muitas ameaças, de ouvintes mesmo, dizendo o seguinte: “Tá com pena dos presos? Então leva pra tua casa”. Ou, ainda: “Tu faz campanha pra dar hotel cinco estrelas pra eles”. Puxa vida, esse é uma ideia absurda. Eu já fui assaltado. Eu e muita gente. E certamente o ladrão devia estar na cadeia, e não na rua.
IHU On-Line – Como é a situação física (estrutura) dos presídios que visitou? Em quais deles há superlotação?
Daniel Scola – Há superlotação nos dez presídios que eu visitei. Muitas pessoas me perguntam qual é a marca de um presídio. Para mim, é o cheiro de esgoto. Isso porque as cadeias são projetadas para um determinado número de presos, mas na verdade recebem o dobro, o triplo. E o que acontece, então? A canalização projetada recebe o dobro, o triplo da capacidade. E aí sempre estoura, transborda e não funciona. O déficit de vagas atualmente é de 11 mil – ou seja, as cadeias existentes têm 16 mil vagas, mas a massa carcerária é de quase 27 mil pessoas. A construção de dez cadeias não resolveria o problema na sua totalidade. Aliviaria bastante, mas não resolveria. Dá pra ver, portanto, que estamos muito longe de um sistema razoável.
IHU On-Line – Foi aprovado pelos juízes responsáveis pela fiscalização dos presídios gaúchos privatizar os serviços carcerários. Acredita que a medida irá melhorar a situação do sistema prisional gaúcho?
Daniel Scola – Na verdade, o que os juízes de varas de execuções criminais aprovaram foi a terceirização dos serviços penitenciários, e não a privatização. Houve muita confusão, inclusive da imprensa, quando houve essa decisão. A terceirização é uma idéia interessante. É uma espécie de parceria público-privada (PPP). A construção e exploração da mão-de-obra da cadeia ficaria a cargo da iniciativa privada e a administração seria pelo feita pelo Estado. É uma saída, sim.
IHU On-Line – É comum os presos assumirem funções dentro dos presídios que deveriam ser realizadas por funcionários?
Daniel Scola – Sim, é muito comum. Os presos cuidam das galerias, trabalham na cozinha, fazem reparos na cadeia. Acho que se for para mantê-los ocupados, sem comprometer a relação Estado-apenado, não há problema algum.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum outro aspecto não questionado?
Daniel Scola – É importante deixar claro que os problemas do sistema carcerário não são culpa só do atual governo, embora o governo tenha entendido que a série de reportagens foi exclusivamente para prejudicar a atual administração. Eu não entendo assim. Investimentos substanciais em presídios não são feitos desde 1997. Ou seja, de três governos pra cá. As últimas cadeias razoavelmente bem projetadas foram as chamadas penitenciárias moduladas (Montenegro, Osório, Charqueadas). Depois disso, pouco ou quase nada foi feito. Recentemente, abriram uma nova cadeia no interior de Caxias do Sul. É o único caso do mundo de uma cadeia inaugurada duas vezes. Ela foi concluída e, logo em seguida, se constatou que ela não tinha segurança razoável para ser mantida aberta. Até hoje as celas não foram totalmente ocupadas. O problema todo é que construir presídio não dá voto. Pelo contrário, ninguém quer presídio. Mas a sociedade precisa entender que cada município tem que se responsabilizar também pela tentativa de recuperação de seus cidadãos.