AgoraÉQueSãoElas – No triste dia em que se divulga o Mapa da Violência 2015, dando conta de que o número de mulheres negras mortas cresceu 54% em 10 anos (de 2003 a 2013), enquanto que o número de mulheres brancas assassinadas caiu 10% no mesmo período (Faculdade Latino-Americana de Estudos Sociais), o Blog NegroBelchior traz o texto da jornalista e militante feminista Luciana Araujo, que problematiza a questão com conhecimento e radicalidade.
Enfrentar a violência é tarefa cotidiana inerente à condição de mulher, e mais ainda à condição de mulher negra filha da classe trabalhadora
Às vésperas da Marcha das Mulheres Negras, que tomará Brasília no próximo dia 18, o escancaramento do debate sobre a cultura da violência contra as mulheres levou à ação #agoraéquesãoelas e ao convite do querido Douglas para ocupar este espaço.
A causa é importantíssima. Enfrentar a violência é tarefa cotidiana inerente à condição de mulher, e mais ainda à condição de mulher negra filha da classe trabalhadora. E o fato de vários de nossos parceiros da luta feminista terem sido impelidos a abrir mão de seu privilégio social de protagonismo nos espaços públicos de debate – ainda que por uma semana – é uma pequena amostra do potencial do debate aberto nos últimos dias. Estão todos chamados a seguirem fazendo isso quando os holofotes não estiverem mais uma vez voltados para vocês, viu rapazes? Será uma forma de mostrar que realmente se convenceram que o lugar de privilégio que ocupam lhes foi assegurado pela sociedade desde o surgimento da propriedade privada à custa da secundarização de metade da população mundial, descortinada por Simone de Beauvoir em 1949 e que voltou a causar horror à ordem e aos “homens cordiais” do Brasil de 2015.
A violência machista, racista e de classe é estrutural no país
Voltando ao tema central, há um debate que precisa ser tirado debaixo do tapete. O exercício da violência não é só um ato individual. Obviamente se materializa de forma mais escandalosa na agressão física, moral e psicológica. E também, por óbvio, todo aquele que pratica tais atos tem que ser responsabilizado.
E os homens, como perpetradores da maioria absoluta dos casos de violação aos direitos fundamentais das mulheres, devem mesmo se envergonhar, como muitos relataram ter se envergonhado em meio à discussão levantada pela onda de pedófilos que atacaram a menina participante de um programa televisivo. O debate sobre a agressão a Valentina e a campanha #PrimeiroAssedio expuseram o que a sociedade insiste em fazer de conta que não vê: toda menina e toda mulher no Brasil já sofreu violência, ainda que não tenha se dado conta disso pelo fato do problema ser tão naturalizado.
Os homens, como perpetradores da maioria absoluta dos casos de violação aos direitos fundamentais das mulheres, devem mesmo se envergonhar
No entanto, culpabilizar somente os indivíduos serve apenas para limpar a barra da sociedade e esconder o componente estrutural que submete também os homens à lógica da masculinidade violenta. É para isso que educa-se os meninos ao impor que eles ‘não choram’, não podem gostar de bonecas ou ser ‘afeminados’, têm que brincar com armas e reproduzir o exercício da brutalidade das lutas e guerras.
A violência racista, machista e de classe é estruturante da sociedade brasileira, construída sobre o quase extermínio dos povos originários e a escravização por 388 anos de um dos maiores contingentes negros em todo o mundo. Por isso, os indígenas continuam sendo dizimados pelo agronegócio e avança no Congresso Nacional a PEC 215. Por isso, as polícias do Brasil mataram em 2014 mais pessoas que os atentados de 11 de setembro nos EUA1, como destacou Rogério Pagnan na ‘Folha’ em 3/10 (em sua maioria jovens negros). Por isso a guerra aos pobres disfarçada “guerra às drogas” assassinou o menino Eduardo de Jesus Ferreira aos 10 anos no Complexo do Alemão, com uma bala de fuzil disparada contra sua cabeça a cinco metros de distância, e os policiais envolvidos na operação e nos disparos foram inocentados por agir “em legítima defesa”. Minha dolorida homenagem a Terezinha de Jesus, mãe de Eduardo, às Mães de Maio, às mães dos 19 assassinados na recente chacina de Osasco e Barueri e em tantas outras, às mães, irmãs e companheiras de todos os jovens negros mortos de forma violenta em nosso país (72% dos 50.715 assassinatos registrados com apontamento do quesito raça/cor em 20132). Por isso avança também no Congresso sob comando de Eduardo Cunha e do PMDB a PEC 171/1993 (o estelionato social que pretende reduzir a maioridade penal) e outros projetos do mesmo naipe, como os dos senadores Jorge Viana (PT/AC) e José Serra (PSDB/SP) para aumentar o tempo de internação de jovens em conflito com a lei de três para 8 ou 10 anos, respectivamente.
As mulheres negras a violência é multiplicada
Todas essas formas de violência, além das revistas vexatórias nos presídios, as violações na hora do parto, a transfobia, a lesbofobia, a bifobia, a gordofobia, as violações simbólicas que perpetuam os lugares hierarquizados “de mulher” e “de homem” na mídia e na educação, atingem todos os dias a nós mulheres. E nós negras sofremos em dobro. Estamos na base da pirâmide salarial, recebendo até duas vezes menos que os homens brancos3.
Corremos duas vezes mais riscos de sermos assassinadas que as mulheres brancas, e se formos jovens negras entre 15 e 29 anos de idade, a discrepância na taxa de homicídios sobe de 4,6 por cem mil para as brancas e 11,5 por cem mil para nós4.
Entre 2009 e 2011 fomos 73% das vítimas de mortalidade materna, segundo Federação Brasileira de Associações de Ginecologia e Obstetrícia divulgou em abril deste ano. Também somos maioria entre os desempregados e subempregados, entre as vítimas de tráfico de pessoas violência doméstica e feminicídios. Em setembro do ano passado, jornal ‘O Globo’ divulgou estudo realizado pelo ginecologista Mario Giani Monteiro, do Instituto de Medicina Social da UERJ, informando que mulheres negras temos 2,5 vezes mais riscos de morrer por complicações pós-aborto do que as brancas. Uma realidade que nos adoece pela consciência cotidiana de que nós mesmas ou um dos nossos pode não voltar para casa no fim do dia porque somos negros. A comoção diante desses dados, no entanto, em geral é quase nenhuma para além das vítimas e seus familiares.
Fora Cunha e seu PL de proteção a estupradores
A criminalização do aborto, por si só uma forma de feminicídio de responsabilidade direta do Estado brasileiro, será ampliada se o PL de Cunha não for derrubado.
Agora, Eduardo Cunha e sua tropa querem derrubar a tipificação legal de que qualquer prática sexual não consentida é estupro. Além de dificultar o acesso à pílula do dia seguinte e ao aborto em casos de estupro, o texto do PL 5069/2013 aprovado na Comissão de Constituição e Justiça no último dia 21 retrocede ao Código Penal de 1940. Se aprovado, serão reconhecidas como violência sexual apenas as práticas “que resultam danos físicos e psicológicos”. Agressões sexuais que não deixarem lesões físicas além das marcas psicológicas indeléveis não serão crime. Será o paraíso dos estupradores. E o inferno para milhares de mulheres, dentre as quais nós negras também somos maioria. E especialmente para as meninas e jovens, comumente violentadas sob ameaças, muitas vezes por anos e dentro de suas próprias casas.
As responsabilidades do Estado e do governo brasileiro
Mas, apesar da dimensão histórica, essa realidade também não se perpetua por acaso. A “Pátria Educadora” que afirmou “a tolerância zero” com a violência contra as mulheres na promulgação da Lei do Feminicídio, no 8 de março deste ano, ainda é uma promessa distante. Antes de fundir as secretarias de Políticas para as Mulheres, Promoção da Igualdade Racial e Direitos Humanos num único ministério, em maio deste ano o governo federal já tinha reduzido os orçamento das SPM, Seppir e SDH em 43,8% e 55,9 e 55,5%, respectivamente. Ou seja, a extinção do caráter ministerial das pastas foi o coroamento de um processo que já asfixiava as políticas de enfrentamento à violência e ao racismo e em defesa dos direitos humanos. Na educação, a tesoura retirou 19% do orçamento do ministério que já trocou de comando sete vezes em um ano. Enquanto isso o Brasil segue em 7º lugar mundial em assassinato de mulheres e no alto do pódium em transfeminicídios (e mesmo assim as mulheres trans foram excluídas da lei 13.104/2015 pela turma do Cunha).
Além dos escândalos de corrupção e do incômodo dos setores que não aceitam nenhuma garantia de cidadania para os filhos da classe trabalhadora, a compreensão de uma parcela da população de que medidas efetivas para mudar essa realidade estão sendo cada vez mais abandonadas no “balcão de negócios” da “governabilidade” também ajudou a derreter em menos de seis meses a popularidade do governo Dilma.
A presidenta deve saber que, no dia 18 quando aparecer no palanque para saudar a Marcha e reafirmar retoricamente seu “compromisso” com as mulheres negras deste país, estará diante daquelas que resistem desde a primeira mulher sequestrada da África para escravização no Brasil. Não nos somaremos aos que querem impor um terceiro turno eleitoral por meio de um processo de impeachment sem crimes comprovados. Mas também não baixaremos a cabeça nem abriremos mão de nossas demandas porque a dívida deste país conosco é do tamanho da sétima economia do mundo, fundada sobre o sangue de nossas e nossos ancestrais.
Na luta pelo Fora Cunha, pelo Bem Viver e contra a violência sexista e o racismo
Antes da Marcha das Mulheres Negras, teremos as mobilizações pelo “Fora Cunha! E contra o ajuste fiscal”, organizadas em todo o país pela Frente Povo Sem Medo no próximo dia 8. As mulheres brasileiras estarão presentes, como fizeram no último fim de semana. E no próximo dia 11 (às 19 horas no auditório Paulo Kobayashi da Assembleia Legislativa) será divulgada à sociedade paulista a carta de princípios do comitê organizador da Marcha das Mulheres Negras no Estado. Anote em sua agenda e vamos às ruas defender nossos direitos porque #agoraéquesaoelas.