Minissérie de oito episódios, “Inacreditável” estreou na Netflix no último dia 13, contando a história da adolescente Marie Adler (Kaitlyn Dever) que denuncia um estupro, retira a queixa e depois acaba se vendo enfrentando uma acusação de falsa denúncia que pode levá-la a até um ano de prisão.
Embora os nomes da série estejam todos trocados, “Inacreditável” é baseado em um caso real, de 2008, contado por uma reportagem produzida pelo Marshal Project com a Pro Publica (clique para ler em inglês), que ganhou um Pulitzer em 2015. A matéria deu origem também ao livro “Falsa acusação – Uma história verdadeira”, lançado no Brasil recentemente pela editora Leya.
O primeiro caso
Marie conta às autoridades que um estranho mascarado invadiu seu apartamento em Lynnwood, cidade de Washington. Depois de amarrá-la e amordaçá-la, ele então a estuprou repetidamente por horas. Além disso, tirou várias fotos de Marie subjugada. Depois, obrigou a garota a tomar um banho e levou os lençóis da cama dela consigo ao ir embora.
Marie já tinha uma vida difícil. Desde os 6 anos, tinha passado por vários lares temporários com pais adotivos e inclusive já tinha sofrido abuso. Quando o estupro acontece, ela estava vivendo sozinha há pouco tempo, com ajuda de um programa governamental. “Eu me mudei muito quando era mais nova”, contou ela. “Estive em orfanatos também. Talvez em dois desses e provavelmente 10 ou 11 lares adotivos”.
Sem um departamento específico para casos sexuais, Maria foi interrogada por dois detetives – repetidamente, eles a fizeram contar sua história.
A reação fria da jovem ao caso provocou estranhamento em pessoas próximas, como seus pais adotivos – a ligação da última guardiã que ela teve inclusive é o que começa a girar o caso contra Marie. Os detetives a pressionam e apontam supostas contradições da garoto.
Depois de ser pressionada, a jovem acabou dizendo à polícia que ela tinha inventado tudo – o que era mentira. Irritados, os detetives resolveram processá-la pela falsa denúncia e ela acabou, depois, aceitando um acordo em que pagou as despesas do caso, de 500 dólares, e aceitou aconselhamento psicológico, além de ficar em condicional.
Quando o estuprador foi preso, a série mostra que o detetive do caso dela a procurou para pedir desculpas e devolver os 500 dólares que ela pagou. Marie não aceitou apenas isso e processou a cidade, entrando em acordo por US$ 150 mil.
Segundo a matéria original, Marie se tornou uma caminhoneira de longa distância, casou e hoje é mãe. Em 2018, o jornalista Ken Armstrong, um dos que escreveram a história, falou sobre ela ao NPR. “Ela está bem, uma das coisas que Marie nos contou foi que depois de tudo o que aconteceu, ela não queria viver com medo. Ela não queria deixar essa experiência limitar sua vida. Hoje, ela é uma motorista de caminhão que dirige pelo país. Nós dois conversamos com frequência, e parece que toda vez que falo com ela, ela parece diferente. Ela é forte e resiliente”, afirma ele, que foi um dos produtores da série.
A investigação
Anos depois, em 2011, em Golden, no Colorado, uma detetive começou a investigar um caso de uma estudante estuprada em casa – o agressor era um invasor mascarado que a abusou por horas, depois tirou fotos e a fez tomar banho. Stacy Galbraith (na série, Karen Duvall, vivida pela atriz Merritt Wever) fica sabendo pelo marido policial que na vizinha Westmisnter havia um caso similar. “Ele disse imediatamente: ‘Você tem que entrar em contato com nosso departamento. Nós tivemos dois casos recentes que combinam com esse método”, relembrou ela, em entrevista ao Denver Channel.
Foi quando Galbraith conheceu a detetive Edna Hendershot (na série, Grace Rasmussen, vivida por Toni Collette), que já tinha trabalhado em vários casos de estupro. Um deles era de uma mulher de 59 anos atacada por um homem mascarado que, depois, roubou a câmera dela, usada para fazer fotos. Ela sabia ainda de outro caso similar na cidade de Aurora, próxima,
As duas perceberam que possivelmente estavam perseguindo um mesmo estuprador – elas ainda não sabiam, mas era o mesmo agressor de Marie, agora agindo em outro estado. “O dia depois que eu recebi o relatório, antes de falar com a detetive, eu sabia que os dois estupros estavam conectados”, conta Galbraith à revista People. “Depois de ler ( o relatório) era claro que eles pensavam que o caso dele era ligado ao de Aurora – e meus olhos se abriram para o fato de que havia 99,9% de chance de que isso era uma coisa serial, e não um ataque aleatório”, relembra.
As duas trabalharam juntas para tentar prender um suspeito e na investigação logo descobriram outras quatro vítimas, todas muito diferentes e nenhuma na mesma cidade. “Era realmente um ataque estranho, que criava uma sensação de inquietude”, diz a detetive. “Você não sabia onde começar, ou onde ele estava escolhendo as vítimas”.
A investigação incluiu DNA, uma caminhonete Mazda captada parcialmente em uma câmera de vigilância, impressões de um sapato Adidas, até que as detetives chegaram a um nome: o vetereno do Exército americano Marc O’Leary. Depois de prendê-lo, elas encontram um pendrive com várias fotos de vítimas. Elas conheciam todas, menos uma garota de Washington – justamente Marie, que finalmente viu ser feita a justiça.
Galbraith recebeu o prêmio de Oficial do Ano em 2012 pelo trabalho no caso, além do envolvimento em investigações de roubo a banco e um assassinato. Ela foi promovida em 2013 e 2017 e não trabalha mais com casos de abuso sexual.
Ela ainda tem relação amigável com O’Leary e as duas às vezes falam em eventos sobre a colaboração. “No mundo da lei existe muito interesse sobre como trabalhamos juntas”.
O estuprador
Marc O’Leary (na série, Chris McCarthy, vivido por Blake Ellis) cometia os crimes em cidades com juridições diferentes, esperando assim que não fizessem a conexão entre os casos. Esse comportamento levou as detetives a achar que se tratasse de um policial. “Ele estava ciente que as juridisções não se comunicam”, diz Galbraith. “Ele contava que nós não seríamos capazes de juntar os pontos”.
O que acabou levando a O’Leary foi o carro que ele dirigia. Uma mulher ligou para denunciar uma caminhonete branca que estava vendo parada sempre próxima a sua casa. A polícia conseguiu uma imagem e notou que parecia o carro que aparecia nas filmagens de segurança em um dos casos no que parecia ser o veículo do suspeito – uma imagem sem qualidade que não permitia ver a placa. Mas nessa nova denúncia eles conseguiram uma placa e chegaram ao nome de O’Leary.
A partir daí, eles recolheram o DNA de O’Leary em uma lanchonete – mas acabaram descobrindo depois que se tratava, na verdade, do irmão dele. O DNA recolhido nas cenas era pouco, mas foi capaz de mostrar que o DNA recolhido era da mesma linha familiar do suspeito. Ainda assim, a investigação tinha que descobrir qual dos dois irmão teria cometido os crimes – ou se tinham agido juntos. Uma marca de nascença na perna de O’Leary, memorizada por uma das vítimas, acabou ajudando na identificação
O’Leary stalkeava as vítimas, invadia as casas delas e as atacava enquanto dormiam. Estuprava as vítimas por horas e depois ordenava que tomassem banhos e limpava o ambiente. Além disso, tirava fotos das vítimas – foram achadas depois mais de 400 imagens. A série mostra que ele tinha livros sobre perícia e casos de estupro que o ajudaram a apagar as provas que deixava.
Segundo o Denver Post, O’Leary dividia as pessoas entre duas categorias, os “alfa” e os “bravos” – ele chegou a dizer à polícia que fazia parte de uma sociedade secreta. Às vezes ele se referia aos alfa como lobos. Acreditando ser ele mesmo um “alfa”, O’Leary achava que podia ter sexo com quem ele quisesse. O fato dele se referir a si mesmo como um “lobo” é mencionado rapidamente na série.
Sua namorada da época, Amy Wozny, deu uma entrevista afirmando que vomitou e passou mal ao descobrir o que ele tinha feito. “Ele era bem cavalheiro e protetor”, contou ela ao programa 48 Hours. “Ele era muito charmoso. Era muito divertido conversar com ele. Nós conversávamos por horas constantemente. Havia uma leveza nele, embora ele tivesse um senso de humor sombrio”.
Ele confessou 28 estupros no Colorado e dois em Washington. “Eu estou fora de controle. Estou fora de controle há muito tempo… Palavras são inadequadas para descrever a maneira terrível que eu… agi. Só posso esperar que minha sentença hoje as satisfaça”, declarou ele, no fim do julgamento. “Eu estou aqui porque eu preciso estar na prisão. Eu sei disse provavelmente mais que qualquer um aqui. Eu sei há um tempo”.
O estuprador foi condenado a mais de 300 anos de prisão e está atualmente na Sterling Correctional Facility, no Colorado, cumprindo sua pena.Veja também
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